segunda-feira, 23 de julho de 2012

O céu é o limite?

Vez por outra leio reportagens que me deixam confusa . . . . .  confusa no sentido de não conseguir formar uma opinião minimamente consistente. Por outro lado é bom porque me faz pensar . . . . adoro pensar. Li hoje pela manhã na folha de São Paulo que atletas femininas estão tomando medicamentos para alterar seu ciclo menstrual ou eliminar a TPM  para que possam participar com excelência nas competições. Para que essas sensações e incômodos desse período não afetem seu desempenho. Essas intervenções químicas no organismo, com o intuito de fazer com que o organismo tenha seu melhor rendimento, dê aos atletas a oportunidade dele não atrapalhar, sempre acendem uma luz amarela no meu cérebro. Não sou contra intervenções químicas, muitas são necessárias para estabilizações de quadros ou mesmo para o planejamento familiar. O que me faz pensar nessa matéria é o motivo que leva as atletas a interromperem seu ciclo menstrual, é para que tenham um desempenho ótimo. Sua profissão é a competição, portanto, qualquer coisa que venha atrapalhar seu rendimento deve ser eliminado. A menstruação é uma delas, um ciclo natural do organismo, que teoricamente deveríamos respeitar. O organismo feminino foi concebido com essa característica e quando o eliminamos porque nos atrapalha, em parte estamos encapsulando algo que só é próprio da mulher. Bem . . . . se algum atleta estiver lendo isso com certeza deverá pensar: "é bem coisa de psicólogo que não tem mais o que fazer, já que vencer é muito mais importante do que ser mulher". Não posso deixar de concordar, esse é seu objetivo de vida. Sinto um dilema, o esporte é o que movimenta aquele indivíduo, mas ao mesmo tempo negar sua própria condição . . . . . socorro . . . . . qual o limite entre o que se é e o que se faz? Saindo do mundo dos esportes, entrando no mundo do desempenho escolar. Hoje estão prescrevendo para adolescentes medicamentos que aprimoram seu rendimento no aprendizado. Não estou falando da Ritalina (medicamento largamente utilizado hoje para os "diagnósticos" de TDAH (transtorno de deficit de atenção e hiperatividade), mas de medicamentos que estimulam o cérebro do adolescente de maneira que se concentre mais e tenha um desempenho nos estudos mais eficiente. É necessário? Estão sendo denominados até de pílulas da "inteligência". Por que não usá-los? Afinal não se está "inventando" nada, só turbinando o cérebro e por isso o adolescente terá chances maiores de entrar em boas universidade e provavelmente ser um profissional bem sucedido. Isso é algum crime? Vivemos em uma sociedade competitiva e o valorizado é o destaque. Mas, até que ponto, a pessoa não "fabrica" uma idéia sobre si mesma, volta-se só para o externo, para o bem sucedido. Essas temáticas me lembram o livro "Admirável mundo novo" escrito por Aldous Huxley em que as pessoas eram todas "felizinhas", todos os dias tomavam a pílula da felicidade (SOMA). Também eram geneticamente concebidos para as "castas" às quais iriam integrar desde o seu primeiro dia de vida até sua morte. Não havia mobilidade. Era um mundo "perfeito", com equilíbrio social e emocional. Tudo planejado, nada questionado. Ouço com frequência relatos de mulheres ou homens que foram a seus clínicos gerais, ou médicos de confiança e queixaram-se da dificuldade de lidar com a pressão no trabalho, que estavam meio tristes e o médico prescreveu fluoxetina (anti-depressivo). Ou seja, o aprendizado diário para lidar com o cotidiano, com as angústias, com os conflitos é substituído por um medicamento que gera bem estar, por isso tudo fica mais fácil. O que acontece quando tira-se esse medicamento . . . .  tudo volta a ser como era antes, o vestido a ser de chita, a carruagem a ser abóbora e os cavalos, ratinhos. Como equilibrar isso? Não estou levantando a bandeira do sofrimento é importante,  mas como podemos modificar algo em nós se não entramos em contato, se não lidamos com nossas deficiências, com nossas impotências? O adolescente que para destacar-se turbina o cérebro, aparentemente para ingressar em uma faculdade, vai continuar a fazê-lo durante a faculdade para dar conta e vai continuar a fazê-lo quando ingressar em uma empresa, afinal, para virar diretor, tem que se destacar e por isso o cérebro tem que ter o máximo de seu rendimento. E aí, se todo mundo começar a tomar o remédio da inteligência e todos conseguirem dar o máximo de seu desempenho, o que fazer? A indústria farmacêutica vai procurar novos medicamentos? Então, para ser uma atleta mulher, eu tenho que suprimir meu biológico mulher? Quando não for mais atleta, aí meu biológico pode existir naturalmente? Que confusão. Qual é o limite entre o que vem de fora e o que sou por dentro?


domingo, 8 de julho de 2012

A construção de nossa história

Era uma vez . . . . . Cuidei de um paciente que sofria muito com os conflitos vivenciados com seus pais. A maneira como foi educado, a maneira como via que conduziam as própria vidas, a maneira como não se sentia aceito e visto, e outras tantas coisas. Certo dia, em consulta, depois de alguns acontecimentos extremados resolveu que o "problema" não eram os pais, mas ele mesmo, justificando tal afirmativa através da análise que fez da história de de vida de seus pais e de como ele, ainda bebê, era difícil. Concluiu que a culpa era dele. Perguntei-lhe o por quê da necessidade de desculpar seus pais e culpar a si mesmo? E mais, o por quê da necessidade de haver um culpado? Ficou me olhando como se eu tivesse dito tudo isso em hebraico. Naquele momento não fez sentido nenhum para ele a ausência de "culpados", afinal alguém é sempre o culpado, sejam os outros ou sejamos nós mesmos. Ao nascermos, seja lá em que família for, já haverá uma história escrita anterior ao nosso nascimento, com suas marcas, seus brasões e, ao nos inserimos nela, ao iniciarmos nossa existência objetiva e subjetiva nessa história, serão impressos em nossas vidas significados muitas vezes desconhecidos. Somos originários de uma história anterior a nós e continuaremos a escrevê-la mesmo quando não estivermos mais presentes. É uma espécie de imortalidade, que nada tem a ver com potência ou super poderes, mas com continuidade, com construção. Somos antes de nós e seremos depois de nós. Certa vez li um livro, cujo título é "A imortalidade". O desdobramento da obra versava sobre pessoas que buscavam tornarem-se imortais através de relacionamentos com alguns gênios literários, na esperança que, como essas personalidades realizaram produções atemporais, a pessoa que queria tornar-se simbiótica àquela, tinha como busca a imortalidade através do outro. Essas obras ecoavam em algo relacionado ao original do ser humano e por consequência seus autores e obras mantêm-se atemporais no imaginário coletivo. Só para ajudar a ilustrar esse conceito que, aparentemente, parece meio "viajante", Miguel de Cervantes é um excelente exemplo. Quem não conhece, mesmo se não leu, a obra "Dom Quixote" cuja primeira edição foi publicada em 1605, há mais de 400 anos. Hoje, no ano de 2012, tanto os personagens como seu autor continuam vivos. São atuais, imortais de sentido. Mesmo quando não estivermos mais aqui essa obra continuará a produzir significados viventes, produziu isso antes de nós e o continuará a fazer depois de nós. Sua imortalidade não está relacionada ao retrato de uma época, mas com o retrato de processos humanos, com a busca de construção de uma história de si mesmo, desencadeada pela atração a outras histórias, os romances de cavalaria, delineada no subjetivo. O livro não se constrói dentro da realidade objetiva, apesar de precisar sustentar-se dentro dela. Sancho Pança pode ser visto como essa figura, a realidade objetiva, mas a outra história, a história subjetiva, é também pilar de construção da história. Agora uma pergunta. E a história da qual originamos, que foi escrita muito antes de nós, a vivemos na realidade objetiva? Parte dela sim, porém outra não. A história da qual originamos, sem dúvida, está presente em nós, em nosso subjetivo e traz raízes para a construção de nossa própria história. Vejam bem, eu usei traz raízes, não faz ou planta, traz. (Em outro momento, já propus uma reflexão sobre esse tema, como nossa história não é só nossa ou mesmo como pode ser constituída de muito vazio). Comecei esse texto de hoje com "Era uma vez....", início típico de contos de fadas. Por que comecei assim, queria falar sobre fantasia? Não, sobre os significados e as marcas que esse "era uma vez" deixa em nossa linha histórica. Há um conhecido livro, "A psicanálise dos contos de fadas" que elucida o sentido dessas histórias, hoje tidas como aterrorizadoras e politicamente incorretas. Os contos de fadas são recheadas de figuras más, bruxas, magia, angústia, abandono, ciúme, inveja, castigos. Inclusive as versões originais são muito mais aterrorizadoras do que as versões Disney. Têm finais bem "sádicos" para alguns dos vilões. Por exemplo, em Branca de Neve, na versão original a bruxa tem como fim dançar até a morte calçando sapatos de ferro em brasa. Beira a tortura. No livro "A psicanálise dos contos de fadas", o autor explora os significados dessas histórias no subjetivo da criança. Simplificando essa proposta, e muito mesmo, a criança sente angústias, sente o abandono, sente maldade, mas não tem recursos para lidar com isso. Essas histórias de alguma maneira falam sobre o que sentem e de alguma maneira mostram que isso muda. Não dão fórmulas, não é algo que a criança irá aprender a resolver, mas é algo que sentirá como fazendo parte de si, que é real, mesmo sabendo que é uma história. Sua angústia tem um lugar de pertencimento, ela existe e por isso não precisa ser assustador. A criança não se tornará psicopata acreditando que ao torturar fará justiça, sente que o que está sendo contado não é real na objetividade, mas é real em suas sensações. E o adulto, quanto está procurando entender, conhecer a si mesmo, dá para ignorar a história já "escrita" muito antes à sua vinda? Dá para ignorar que as marcas e os contornos dessa história tem a ver com sua própria história? Que marcas essa história imprimiu em mim e que significados se desenrolaram ou se esconderam? É a partir desse olhar, dessa "visita aos mortos vivos" que muitas coisas poderão ter seus contornos modificados, ter seus sentidos desvelados, que marcas poderão ser redesenhas e feridas poderão ser cuidadas. Olhar a história original não é expiar a culpa, procurar o culpado, é tornar parte de si mesmo algo que sempre foi, mas que agora pode ter uma originalidade própria. E essa originalidade própria em conjunto com o anterior já escrito também imprimirá marcas na vida de outro alguém, levará raízes a esse outro alguém, que também, ao olhar para toda essa construção histórica, também terá a oportunidade de dar um contorno próprio. E assim a imortalidade seguirá seu curso e criará novas imortalidades, sempre e através da continuidade da construção da história. Era uma vez . . . . .

domingo, 1 de julho de 2012

Os cuidados da primeira infância

Hoje no jornal diário, que não tenho lido diariamente, li duas reportagens no caderno saúde que me remeteram ao tema dos cuidados da primeira infância. Ambas as reportagens abordavam casos de pessoas com doenças gravíssimas. O interessante é que uma delas era sobre um idoso, bem doente, e a outra sobre um bebê, que no segundo mês de vida desenvolveu uma doença muito grave. Ambos com riscos eminentes de morte. E, coincidência ou não, os dois em momentos opostos do ciclo da vida. Um próximo ao final desse ciclo e o outro logo no início. Só que no caso do senhor idoso a reportagem foi feita porque a família precisou tomar medidas extremas, além das medidas judiciais, para que o plano de saúde liberasse os procedimentos necessários. No caso do bebê foi um transplante de fígado que transcorreu sem as intercorrências capitalistas. Lógico que me mobilizei pelos dois casos, mas no caso do idoso senti aquela sensação de desamparo, tão doente, e tendo os procedimentos negados, como isso é injusto, afinal se nos sentimos doentes precisamos de cuidados. Por que não podemos recebê-los? Estamos nos sentido mal porque não podemos ser cuidados? Na área da saúde essa é uma equação muito complicada, ainda mais em um sistema de mundo capitalista, ou de superpopulação, ou de abismos tecnológicos e discrepâncias de renda, ou mesmo de profissionais desinteressados. Seja lá quais forem os motivos, mas os cuidados da área da saúde nos remetem a nossa primeira infância. Afinal nascemos totalmente desamparados. Não sobreviveremos se não houver um outro para cuidar de nós. Enquanto bebezinhos, quando sentimos uma estranheza, logo nos pomos a chorar (nosso único mecanismo de comunicação) e alguém vem ver o que está acontecendo. Recebemos o leite, o alimento, nos dão banho, nos trocam, nos agasalham, ou seja eu recebo sempre do outro o que estou precisando. E não dou nada em troca por isso, não sou desenvolvido para isso. Por enquanto eu só posso receber, não possuo desenvolvimento suficiente para dar. Não tenho capacidade, ainda, para cuidar de mim mesmo. Na verdade nem tenho ciência do que preciso. Só sinto que não estou bem e aí vem o outro e faz com que eu me sinta bem. Parece até uma descrição ingênua, infantilizada do que acontece, mas é isso mesmo, é uma "troca" ainda bem primitiva, pouco elaborada. Sinto-me mal e alguém faz com que me sinta melhor. Essa é nossa primeira experiência de "troca" com o mundo. E por isso mesmo, já enquanto adultos, quando não nos sentimos bem, nossa primeira experiência de cuidado será acionada, nos sentimos desamparados e é difícil aceitar que para que cuidem de nós precisamos pagar (dinheiro). Temos a lembrança de um cuidado doado e não de um cuidado trocado. E deveria ser assim sempre, se eu perdi a capacidade de me cuidar porque o outro não pode me ajudar nisso sem que eu tenha que pagar?   Sou psicóloga e a hora de acertar o valor da consulta é sempre angustiante tanto para o psicólogo quanto para o paciente. Ele está lá, sofrendo, com dores aparentemente inexplicáveis, como nos primeiros meses de vida cuja ciência dos motivos pelos quais está se sentindo mal é vaga, e aí um profissional da área dos cuidados psíquicos quer cobrar para cuidar. Um pouco ultrajante. E ainda o papel o psicólogo será muito parecido com o papel daquele outro da minha primeira infância. Irá cuidar no sentido do amparo, no sentido acolhedor, no sentido de cobertor, cuidados que eu recebia sem ter que dar nada em troca. Na medicina clínica existem os exames para comprovar, algo pragmático que mostra o que o faz se sentir mal e prescreve uma conduta com algo do externo, remédios, intervenções cirúrgicas, etc. E na psicologia? O que temos para cuidar são as sensações, as emoções, o sofrimento psíquico, um mal estar geral que nada tem haver com o biológico. Não prescrevemos nada que vem de fora (salvo casos em que há a necessidade de em paralelo de intervenção medicamentosa psiquiátrica), nossas "prescrições" estão sempre atreladas à história de vida do indivíduo, às suas experiências, ao que sente, ao seu desamparo, ao seu sofrimento, etc. O "material" que sempre usamos é de "posse" daquele indivíduo que está lá na nossa frente se desnudando e buscando sentir-se melhor. E temos que cobrar por isso ..... como é difícil. E para o paciente também é muito difícil pagar por isso. Sempre há certa transferência de raiva na hora de pagar, mesmo quando sente que está sendo cuidado. Em sua primeira infância esses cuidados sempre foram naturais e ao tornar-se adulto, porque não pode ser como antes? Quando adultos, ao sentirmos que não estamos capazes de cuidar de nós e precisamos de um outro que nos ajude nisso, sempre nos remetemos a nossa primeira infância, em que os cuidados eram espontâneos e, via de regra, faziam com que me sentisse melhor. Acredito que até por isso, quando doentes, do corpo ou do psiquismo, é muito difícil lidar com essa troca financeira que o modelo de saúde da atualidade nos impõe. Acredito que este possa ser um do motivos que o idoso sofra tanto ao necessitar de cuidados e não recebê-los, afinal à medida que se vai envelhecendo a capacidade de cuidar de si mesmo vai diminuindo e ele se aproxima psiquicamente de sua primeira infância. Talvez até por isso as matérias tenham me chamado tanto a atenção. Ambos os casos falavam da primeira infância, do desamparo e da necessidade do cuidado desvestido de troca, apenas uma necessidade primitiva de receber para continuar vivo, que em outro momento de nossa vida foi tão real e tão vital.

sábado, 7 de abril de 2012

Paradoxo

Durante muitos anos e há vários eu trabalhei na Avenida Paulista esquina com a Rua Frei Caneca - São Paulo -  Brasil (pelas estatísticas que recebo do blogger existem leitores que acessam de outros países,  e também com certeza, nesse Brasil enorme, essas ruas devem existir em cidades). Continuando os parênteses (em algum momento vou voltar ao tema principal, título do texto) adoro a Avenida Paulista e seus arredores. Lá tudo cabe. São muitas as pessoas que circulam e só de olhar para o semblante delas uma enxurrada de fantasias sobre suas histórias de vida se faz presente. É muita diversidade. Vê-se pessoas sozinhas ou em duplas e grupo, adolescentes, amigas conversando, rindo, já vi também chorando, homens de terno e gravata, mulheres de terninhos ou conjunto executivo de saia e blazer, saltos altos em calçadas esburacadas, também mulheres de rasteirinhas, homens estátua para ganhar alguns trocados e moedas, rapazes e garotas com mochilas, os anteriormente denominados hippies,  hare krishnas, muitas lojas, alimentação, shoppings, cinemas, teatro, museu, igrejas, colégios, hospitais, um constante circular de pessoas em apenas, para as dimensões paulistanas, 3km. A vida lá mostra muito movimento, muita diversidade, circulam muitas emoções. Pensemos no hospital: muitas pessoas saem de lá contentes, com sentimentos de esperança e alegria porque a família acabou de ganhar um novo serzinho que nasceu muito bem, está saudável. E outros tantos talvez estejam saindo da visita à UTI totalmente desolados, desesperançados porque a perda de um  ente querido parece próxima. Essas pessoas circulam pela mesma avenida e seus afetos junto. O parênteses não exatamente fechou, mas já comecei a falar um pouquinho sobre o paradoxo (talvez o parênteses nunca tivesse aberto, porque o paradoxo já estava presente). Por que citei a Paulista e sua esquina com a Frei Caneca? Lá eu vivia diariamente o que entendo como um paradoxo. Ia de carro e para entrar e sair do estacionamento da empresa precisa enfrentar essa esquina em que uma legião de pedestres atravessava. Se eu ficasse esperando os pedestres me darem passagem o sol iria se pôr e eu continuaria, ali, esperando (essa esquina não tem farol de pedestres). Então de maneira o mais ou menos agressiva, de qualquer forma era agressiva, eu vagarosamente impulsionava meu carro chegando bem perto dos pedestres até que eles paravam e eu seguia com meu carro. Só que no horário do almoço muitas vezes eu atravessava aquela esquina a pé. Então, como pedestre, eu avançava em direção aos carros que ali queriam virar para que me dessem passagem. Para mim era uma equina na qual eu vivenciava um paradoxo. Eu, enquanto motorista, avançava e "ignorava" os pedestres, e enquanto pedestre, avançava e "ignorava" os carros. Essa experiência me fazia pensar pensar no conceito do paradoxo e como ele fazia parte em muitos momentos do dia. Só que por alguma defesa não se menciona ser paradoxal, mas com conflitos . . . . o que não anula o fato de ser um conflito. Qual a diferença entre paradoxo e conflito? Todos admitimos que o conflito é parte do dia a dia do humano. Mas e o paradoxo?
Mães e pais vivem diariamente com o conflito na educação e nos sentimentos em relação aos filhos. Ao mesmo tempo que são afetuosos, carinhosos e compreensivos, também são enérgicos, duros e muitas vezes nada democráticos. É um paradoxo, é um conflito. O interessante é que usar a palavra conflito torna muito mais suave, mais aceitável do que se sentir paradoxal. O paradoxo mostra a necessidade de se posicionar, pois não é aceitável, na lógica, que dois sentimentos contratórios, ou duas idéias contraditórias possam conviver, co-habitar em uma mesma pessoa. Já o conflito parece uma "briguinha" de idéias que com o tempo se resolverá. Recentemente estudei com uma colega um texto sobre a comunicação entre dirigentes e subordinados. O texto era um paradoxo só, mas que tentou com toda a lógica acessível provar sua proposta: que os dirigentes são os grandes vilões na dificuldade da comunicação nas empresas. Até hoje me pergunto que parte da realidade aquela argumentação espelhava? O paradoxo parece ser um conceito imóvel, ele tem "a lógica a seu favor". O conflito tem mobilidade, é pensar a respeito, fazer as mudanças necessárias que ele poderá diluir-se. O paradoxo não dilui, ele é. Continuando a  exemplificar com o texto que estudei com minha colega, havia em determinada parte da defesa de que os dirigentes usavam da comunicação como ferramenta de poder e dominação e instalavam em seus subordinados uma desvalia que os reforçava a continuar a se submeter à dominação dos dirigentes. Discutimos muito, através de uma visão particularmente pessimista, que o sadismo, o egocentrismo e o narcisismo são do humano e os jogos corporativos nada mais são do repetição de anos de história, de movimentos humanos, mas em outra época, com outra roupagem, outro cenário. Mas será que por "concluirmos" isso a "problemática" em questão não tenha solução? Não sabemos, as relações humanas são complexas, o ser humano é complexo e a tentativa de simplificação disso tira a essência de sua característica que é a complexidade. Complexo . . . . como resolver o paradoxo? Sua essência parece ser exatamente a não solução. O conflito pede solução e o paradoxo o que pede? Será que é compreensão e integração ao humano? Minha pretensão não é dar solução a esse aparente "enigma", mas propor reflexões, e muito menos pretendo ser lógica. Acredito que no paradoxo, que por definição exige lógica, a maneira de integrá-lo a nosso humano não é através da lógica, mas da intuição. O paradoxo é parte do humano, da existência pessoal e global e existem experiências e sentimentos que vivenciamos nos quais a lógica não é aplicável. "Apenas" devemos sentir e perceber que aquilo, aparentemente meio estranho, é parte de nós. Será que tudo tem que ter uma resposta cabível no que hoje entendemos como lógica? A integração de algo tão próprio do humano é importante e dar o devido respeito à sua complexidade é ótimo. Somos tão mais amplos do que a dita lógica tenta nos reduzir. 


quinta-feira, 29 de março de 2012

Chefia masculina ou feminina, o que é melhor?



Tema complexo. Recebi em um desses boletins de RH uma matéria sobre os resultados de uma pesquisa cujo tema era: "se as mulheres preferiam ter como chefes homens ou mulheres?". O resultado apresentado afirmou que 82% das mulheres entrevistadas afirmavam preferir homens como chefes. As razões que justificavam tal preferência foram as mais genéricas possíveis. Confesso que pesquisas do gênero me incomodam do começo ao fim, já que procuram padronizar e justificar algo "impadronizável". Cada ser humano é único, cada um tem uma historia de vida, foi criado em uma cultura familiar única que inserida nos valores morais e sociais da época em que vivem, configuram aquele ser humano em particular. Nos dias atuais, no mundo Ocidental, as mulheres estão cada vez mais à frente do mercado de trabalho e talvez por isso estejam mais em evidência na atualidade. Há poucos anos essa configuração social mudou, e toda mudança demora um tempo para se acomodar. Durante muitos anos trabalhei em grandes corporações e independente da empresa o discurso feminino sobre a liderança da figura feminina era o mesmo. Frases do tipo: "prefiro trabalhar com homens, mulher é muito invejosa", "mulher é muito competitiva", "mulher não sabe lidar com o poder", "aposto que está de TPM", "ninguém aguenta esses hormônios", etc.... essas frases eram diariamente repetidas por diferentes mulheres. Sempre me incomodou, afinal era uma mulher generalizando características de outra mulher, então .....  se quem fala é mulher, ela também é assim, segundo sua própria concepção de mulher. Simples, né? Não, a mulher que emitia sua generalização não falava dela e sim da outro tipo de mulher, se colocando então em outro gênero do femino (paradoxal, digamos) em que essas características não eram parte dela.... uma mulher. Confuso .... mas era assim que funcionava, e funciona até hoje. As "falantes" ainda não perceberam que quando falam das característica genéricas do feminino estão falando de si mesmas e generalizando a si mesmas, também. Só que esse grau de conscientização, ou de lógica, não se aplica a elas. Então, conclui-se o que? Outra generalização muito divulgada e anunciada é que mulher é fofoqueira. Nessas empresas conheci vário homens que eram verdadeiras "candinhas" e outras tantas mulheres que eram muito discretas. (Abre parênteses - O "fofocar" fez parte da nossa evolução em sociedade, os motivos, agora não cabem, então o "fofocar" é parte do desenvolvimento social humano e não exclusivo da mulher. Todos "fofocam" (falar sobre a vida de outro, falar do outro), e dentro desse falar do outro existem as "fofocas" perniciosas, destrutivas que são utilizadas para derrubar.. "Fofocas e boatos" com intenção, com uma direção, podem ser armas letais. Fecha parênteses.) Voltando a mulher, ou melhor ao ser humano. Ficar batendo na tecla que o homem é assim e a mulher assado não ajuda em nada na melhoria da relação com a sua chefia, seja homem ou mulher. O que leva é questionar o papel da autoridade em nossa vida, como nos sentimos diante dela. Quem gosta verdadeiramente de ser subordinado? De estar sob o olhar, a vigilância e a crítica de alguém? Lembrem-se de quando éramos adolescentes: o pai, a mãe, a tia o tempo todo vigiando, querendo as "prestações" de conta do que fez, porque fez, do que deixou de fazer, etc....não eram muito bem vindos, pareciam grilhões na época (os sentimentos adolescentes são intensos). Será que a relação com as chefias não dá uma certa reeditada naquilo que já se vivenciou nessa relação de autoridade e castração. Afinal, ter o gostinho de fazer do meu jeito e frequentemente ser podado, é frustrante. E a relação com as chefias também é. Dentro das empresas o campo de atuação do eu, do próprio é limitado, é parte daquele sistema ter contornos bem definidos do que querem e do que não querem. Estar dentro de um sistema que limita tanto o meu eu é angustiante. Uma das saídas para um certo alívio dessa sensação é desqualificação daquilo tudo. E nesse pacote de desqualificações vem a chefia. Naquela organização eles entendem que sua competência não é para o comando, mas para ser comandado. Como isso dói ..... muitas vezes os chefes cometem tantos erros (são seres humanos, não são completos e por muitas vezes desconhecem muita coisa) e pode vir no íntimo aquela sensação de: eu faria melhor, por que não estou naquela posição? Se me desqualificam eu desqualifico também. É uma defesa. O que acredito, generalizando, fazendo exatamente a mesma coisa que estou "condenando" é que as mulheres que hoje ocupam cargos de liderança adquirem um status de poder (subjetivo) que é muito atraente. Que mulher não gostaria de ser citada como uma das poucas que conseguiram chegar ali e enfrentaram uma legião de homens .... uma genuína fêmea-alpha. Os homens, em nossa evolução, aprenderam a lidar com o macho-alpha, já a mulher não, afinal essa figura em nossa cultura social nunca existiu. Sempre foram os machos-alpha que comandaram. Só que agora temos as fêmeas-alpha. O que fazer? Talvez conhecer mais a cultura dos bonobos em que a figura central é uma fêmea-alpha, e além disso sabem se divertir bastante..... já os mencionei em outro texto (Touradas e sadismo). Por fim, deixemos as generalizações de lado e procuremos nossa própria identidade e de que forma consigo encaixá-la no meio que vivo e quero viver, sem que sinta tanta angústia. É um equilíbrio difícil, porém possível, que traz conforto, e o dia a dia fica bem mais suave. Homens ou mulheres como chefia, tanto faz, o que deveria estar em evidência é como sou.

sexta-feira, 23 de março de 2012

Quando nosso EU está fora de nós

Todas as manhãs, no percurso que faço de carro ouço uma rádio de notícias. Nesse programa existem vários comentaristas de diversos assuntos. Bem no horário que ouço tem um que não me interessa em nada, a temática é sobre futebol. Mas hoje, para meu espanto, não só ouvi atentamente como provocou-me reflexões. O assunto versava sobre o jogo de ontem, da Libertadores da América, em que o Neymar sofreu faltas graves, caiu muito e o juiz não penalizou o adversário. A discussão (os jornalistas da rádio interagem com o comentarista), era a respeito da arbitragem, que foi ruim, mas que o Neymar estava tornando-se um sinônimo de jogador que cai muito. Compararam-o com o Messi que mesmo sofrendo várias entradas agressivas, mantinha-se em pé. Especulou-se nessa discussão o quanto essa tática de cavar faltas talvez estivesse prejudicando a imagem do jogador, inclusive denegrindo a qualidade de seu futebol. Houve até uma frase do âncora colocando que o Neymar, de vitima passou a ser réu, pois no jogo do dia anterior ele realmente sofreu faltas agressivas, mas não "apareceram" defensores ao jogador, provavelmente por sua imagem e histórico de cair muito. E nessa discussão toda a rádio convidou os ouvintes para assitirem no Youtube um video  sobre o Messi, com vários lances nos quais esse jogador sofreu faltas, ou entradas agressivas e manteve-se em pé (vejam bem como era inflamada a temática). Em determinado momento o comentarista relatou que em um almoço com o Neymar Pai, este afirmou que a atitude era estratégica e assumiu que instruía o Júnior a agir assim com o objetivo de cavar faltas. Fiquei pasma, não com o fato do Neymar Pai de ter assumido o teatrinho, mas com a confirmação de que o Neymar Filho não pensa por si, age sempre de acordo com o que o pai pensa e comanda. Freud já disse: "se dois indivíduos estão sempre de acordo em tudo, posso assegurar que um dos dois pensa por ambos". E pelo pouco que sei (se estiver comentando alguma injustiça favor me avisem, caros leitores) não há outra figura a qual o Neymar Filho dê ouvidos, ou siga aos comandos.  Onde estão as idéias do Neymar Filho? Onde está o que pensa ou sabe sobre si mesmo? A resposta é simples: estão no Neymar Pai. O Eu do filho está no pai. E quando essa figura paterna não existir mais (não precisa ser a morte, mudanças podem acontecer) o que será do Eu do Neymar Filho? Não será, não há Eu. Irá sucumbir em seu vazio interno, ao seu EU oco. O Neymar não é o primeiro caso da história e não será o último, em que os desejos das figuras paternas são se sobrepõem ao EU dos filhos. Esses pais não permitem (muitas vezes sem consciência disso) seu "sonho" (que não é o filho, mas aquilo que planejaram para o filho) crie uma maneira própria de ser. Muitos pais idealizam vidas para os filhos e seguem obstinadamente esse "projeto", não deixam espaço para o indivíduo descobrir algo sobre si, do que gosta, do que não gosta, o que pensa, etc. Conduzir, dar condução e condição emocional para o filho descobrir a si mesmo é importante e imprescindível. A criança precisa, inicialmente, ser conduzida. Então mostra-se o mundo e as possibilidades ao filho. Coloca o filho ou a filha no ballet, na ginástica, em artes, no teatro, no tênis, no futsal, no volley, etc., com o intuito de favorecer experiências ao filho para ele possa conhecer suas habilidades, e também suas inabilidades, e a partir disso sentir desejo, impulsionar-se, com  desejos próprios . Outra ilustração de uma condução destrutiva é o caso tenista Martina Hings. Sua mãe colocou esse nome já com a intenção da menina seguir os passos da grande tenista Martina Navratilova. Então, para essa mãe alcançar o seu ideal colocou a filha desde muito nova no tênis e investiu emocionalmente tudo nessa "empreitada". A Hings quando adolescente ganhou campeonatos e quando jovem já estava afastada das quadras por graves lesões. Essa busca pelas vitórias foi treinada todos os dias em função do ideal da mãe, só que o organismo da Martina Hings não estava de acordo com esse ideal. O que essa mãe se esqueceu de colocar em seu planejamento é que a Hings não era a Navratilova, era a Hings. E, será que algum dia a Hings foi vista apenas como uma menina com característica de criança, sabem, com aqueles olhinhos curiosos? Ou será que toda vez que essa mãe investia na filha ela via a Navratilova e não a própria filha? Para quem assistiu Cisne Negro, este é outro exemplo do desejo da mãe encapsulando qualquer desejo próprio e singular daquele indivíduo. Esses desejos são desejos "dementadores" (figuras do livro Harry Potter), sugam a vida emocional, o que impulsiona, o que nos leva a ser nós mesmos. No caso do Cisne Negro, em uma interpretação bem simplista, uma forma do psiquismo desvencialiar-se desse ataque brutal e mortífero foi a loucura. A loucura é uma linguagem própria para aquele indivíduo, é uma busca de diferenciação, mas como sua estrutura emocional, seu psiquismo é frágil e fragmentado, essa busca não se sustenta. A maneira encontrada de sobrevivência psíquica é o transbordamento de suas fragmentações que não conseguem unir-se. Surge o cindido, o rompido. Nesse indivíduo, é uma maneira própria de escancar como sofre, como é frágil, como é fragmentado. Por fim, quando nosso EU está fora de nós quem somos? E como é bom ter nosso EU com a gente mesmo.

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

Educação "formal" em casa


Outro dia li em uma revista uma reportagem sobre pais que optaram por dar a educação formal em casa, aos filhos, ao invés de matriculá-los em uma escola. A reportagem era, mas isso nada tem a ver com parar para pensar sobre o tema. Uma das principais características dessa educação que me chamou a atenção ou me causou estranheza é que nessas famílias, os próprios pais, é que assumem o papel do "professor". Não contratam professores particulares ou mesmo os antigos  preceptores, eles se incumbem da tarefa. Causou-me certo desconforto . . . . ainda não consigo identificar com riqueza de detalhes o que foi esse desconforto e por isso vou propor algumas idéias soltas. Como fica construído, delimitado no imaginário infantil e do jovem essas figuras maternas e paternas? Como esses pais conseguem ter conhecimento sobre todas as áreas estudadas?  Como fica a construção do indivíduo social, afinal não estão inseridos em uma comunidade macro? São questões para pensar! Pergunto-me: "Como fica a circunscrição do papel dos pais?" Sempre debati sobre a temática e o limite na questão sobre o rótulo de amizade na relação mãe e filhos: "mãe deve ser amiga da filha ou não?". Na época que os pais de hoje eram crianças ou adolescentes não havia espaço para o diálogo  e muitas famílias hoje compreendem o conceito de diálogo com o seguinte lema: meus filhos podem me contar tudo, sou amiga(o) deles. Nesse discurso será que não está embutido um conceito reducionista que o diálogo só existe entre amigos? Acredito que esquecem que a qualidade do diálogo é estabelecida  pelo desenho, pelos contornos daquela relação. São esses contornos que estabelecerão o que haverá de comum nesse diálogo e o que haverá de incomum.  Uma das características da amizade, principalmente entre adolescentes, é o acobertamento. Quando se é adolescente, vez por outra, se faz coisas escondidas dos pais e por incontáveis vezes os amigos acobertam. E caso sejam descobertos, juntos assumirão a responsabilidade. Faz parte. E como mãe e pai, cabe o tal acobertamento? Na verdade não deveria, mas tem acontecido com frequência. Mães e pais com medo de perderem seu status de legal e amigo acabam por cair no campo da permissividade. Tudo permitem e por incontáveis vezes já ouvi a seguinte frase: "deixei que fossem sozinhos acampar, sem nenhum maior responsável, porque confio e já esclareci sobre tudo (drogas, álcool, sexo) e sei que também me contarão tudo." Onde está o limite, onde está o amparo? Parece até que ouço: "vá filho, experimente o mundo e me conte como foi", ao invés de: "não concordo, não faz parte desse período, não preciso saber de detalhes de sua intimidade, porque ela é sua, não é coletiva, e você tem que aprender a lidar com sua intimidade,  não vou deixar porque não acho adequado, não deixarei você viajar mais com sua turma porque vi sua foto na internet cercado de garrafas de pinga (ao invés de colocar curtir), não chore meu filho, sei que hoje é difícil, você tem uma vida pela frente, vai conhecer outras pessoas e gostar de outras pessoas, vem deita no meu colo que vou fazer um cafuné." É essa a figura paterna, aquela que contém (tanto no sentido de delimitar como de guardar e de acolher). Então, como ficam as figuras paternas e maternas quando se é ao mesmo tempo pais e professores. Será que como no caso anterior não há uma mistura de papéis que tiram a referência afetiva? Outro dia minhas filhas de 7 anos estavam discutindo e, confesso, como é frequente a situação e não era nada grave, eu estava em outra estratosfera. Dali há pouco fui chamada para a terra ao ouvir de uma delas: "você não está fazendo seu trabalho, como você não deu bronca na fulana, afinal seu trabalho é nos educar e você deveria ter visto que não foi adequado o que ela fez". Esse educar no sentido que ela usou é um educar subjetivo, de formação de valores, de constituição de sujeito, de cidadão, de afetos, nada relacionado com a educação escolar. No caso que estou colocando me causa certo incômodo essa mistura de papéis, o educador subjetivo e o objetivo. Também outro aspecto me gera desconforto.  E o convívio da criança ou do adolescente com os diferentes? E o enfrentamento de situações adversas e frustantes que a escola proporciona? Será que essas situações não farão falta na "composição" subjetiva desse indivíduo? O ambiente familiar é um ambiente seguro e previsível, lida-se frequentemente com o mesmo. Será que não são esses pais que sentem dificuldade em lidar com as próprias frustrações. Nenhuma escola reúne todos os requisitos e lidar com essa falta faz parte da vida. Na matéria um dos argumentos desses pais é por acreditarem que os filhos não precisam aprender coisas que para eles não fazem sentido. Só que a vida por incontáveis vezes não faz sentido, acontece. Será que aprender a lidar com o que não faz sentido também não é importante na formação subjetivo do sujeito. No grupo de estudos que faço parte estamos justamente discutindo sobre essa temática. Do quanto a análise por vezes precisa se aproximar do que não faz sentido, ver isso e buscar um sentido. E aí que o processo criativo acontece, que as mudanças e transformações se mostram e a singularidade do sujeito é descoberta. Talvez a dificuladade em lidar com a angústia e com as frustrações sejam desses pais. Não lidam com sentidos e não sentidos fluidos e por isso precisam estabelecer limites muito restritos. A bolha na criação. É menos angustiantes, o campo de observação e controle é ilusorimante controlável. E com essa postura vão perpetuando em seus filhos a dificuldade em aprender a lidar com contrariedades, frustrações e não sentidos. Para mim a educação formal em casa não faz sentido, mas pensar sobre isso, tentar buscar sentido faz parte, nem que seja para perceber que para mim não há sentido nisso e minha singularidade poderá vivenciar sua originalidade.


quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

Nem tudo está perdido: "Revista de Errologia"

Hoje li uma matéria, no caderno de ciências da folha que me deixou bem contente. "Hipóteses perdidas, experimentos que falharam e resultados que não foram encontrados em pesquisas científicas agora terão um lugar ao sol. Ou pelo menos um lugar para serem publicados. Um novo periódico científico, batizado de "Journal of Errorology" ("Revista de Errologia"), surgiu para contar a história de trabalhos que não seguiram o rumo esperado". É uma quebra de paradigma na onipotência científica, é fantástico. No paradigma científico atual são valorizados os experimentos que "deram certo", cujos resultados são tidos pela classe científica como positivos. Esse dar certo é: a hipótese inicial do pesquisador se confirmou, portanto contribuiu para o "progresso" da ciência. E nesse dar certo muitas vezes tem cabido alguns arranjos nos dados ou supressão de outros para que a hipótese inicial se confirme. Não é adulteração de dados, é mais uma acomodação direcionada para a hipótese inicial. Isso gera muitas vezes outros experimentos, baseados nos resultados do anterior e a manutenção das "distorções". A produtividade "positiva" é o que é valorizada e não a pesquisa. Até ler essa matéria não tinha refletido sobre a importância dos experimentos que não "deram certo". Sem sombra de dúvida contribuem cientificamente. Mostram caminhos, lugares novos e seus resultados. São dados, são respostas, efetivamente uma contribuição. Outra informação que me deixou muito satisfeita é pelo fato da iniciativa ser de um brasileiro da UFRJ: "Conhecer um experimento que falhou ou teve um resultados inesperados pode ser muito interessante para os cientistas", explica o editor. Mas me pergunto: será que haverá aderência? Será que a classe científica irá conseguir desvestir-se de sua onipotência e vivenciar feridas narcísicas. Afinal, admitir e publicar pensamentos e hipóteses que não redundaram em explicações lógicas ou resultados aplicáveis é admitir globalmente que não se é um gênio, que se é falível, que não se sabe tudo. É admitir que é humano. Qual parcela dessa classe será a primeira a dar o passo nessa direção e assumir corajosamente sua posição de falível? Será que esses gladiadores  serão marginalizados?  A matéria ilustra um dos exemplos de experimentos que não "deram certo" com o caso do Viagra. Era um medicamento testado para doenças cardíacas que mostrou-se muito eficaz para disfunções eréteis. Duvido que alguém diga que foi um experimento que deu "errado", afinal existem milhares de homens que têm agradecido diariamente esse "erro". Os cientistas dessa pesquisa, com certeza, tanto no imaginário popular, como no imaginário científico são consagrados, são "salvadores". Casos como esse, como o da penicilina ou do Zyban, não produzem feridas narcísicas. Atirou-se em uma direção, errou-se o alvo, só que acertou-se em uma mina muito mais valiosa. Esse "errado" torna-se fantástico, é um errado que traz alívio. Não acredito que o foco dessa publicação deva ser a manutenção desse status quo, mas aproximar a ciência ao natural humano. Por incontáveis vezes somos provocados pela vida a levantar hipóteses e fazer escolhas baseadas nelas. Algumas vezes os resultados são satisfatórios e por outras  desastrosos. Aprendemos com eles. É isso que acontece, aprendemos e continuamos a levantar hipóteses e fazer escolhas. Com a ciência o processo é o mesmo. Então, mostrar  resultados, sejam eles quais forem, talvez produza muito mais aprendizado do que divulgar apenas os "positivos". Que seja muito bem vinda a "Revista de Errologia".

quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

A chuva e outros desdobramentos



Nesses dias que têm chovido, por várias vezes me peguei observando o fenômeno, e lembrei-me de algo marcante. Lembrei-me de um período bem longínquo da minha vida, a infância, em que a chuva representou um momento de afirmação sobre minhas idéias e sobre mim mesma. O cenário foi o ambiente escolar, mais precisamente as aulas de português. Tempo: 8, 9 10 anos. Eu gostava muito de fazer redações, gostava das minhas idéias, mas sempre tirava notas baixas e nunca obtive nenhum elogio de nenhuma das professoras. Tinham outros alunos cujas redações eram elogiadas e as achava comuns, não via motivos para tal alarde (mas era a minha modesta opinião). Ficava sempre pensando que minha avaliação de mim mesma era estranha, não batia com o retorno das professoras, não conseguia encontrar o que havia de "errado". Os anos foram passando e eu mantinha o mesmo desempenho, a mesma frustração, a mesma estranheza. Estava então, na sexta série, tinha 11 anos, e no primeiro dia da aula de português o professor pediu para que escrevêssemos uma redação descritiva com tema livre. Eu estava sentada junto a janela e, ao olhar para fora, vi que chovia e resolvi escrever sobre a chuva. Não lembro do conteúdo exato, faz muitos anos, mas lembro que escrevi sobre os diversos aspectos da chuva, as diferentes intensidades, sobre suas consequências, sua serventia e lembro que finalizei a redação reunindo todos esses aspectos e destacando sua importância. Gostei do que escrevi, mas deixei minha expectativa de molho, esse professor era "secão", esperava algo semelhante aos anos anteriores . . . . a indiferença. Qual não foi a minha surpresa, quando na próxima aula da matéria, o professor disse que tinha lido todas as redações, em sua avaliação havia muito trabalho a ser feito, e dentre todas as da sala iria ler uma redação para usar como exemplo. Leu o título: A chuva. Quase desmaiei, o tempo parou. Leu a redação inteira e finalizou dizendo que aquela redação estava boa, tinha começo meio e fim e com um bom desenvolvimento das idéias. Flutuei, tamanha a minha satisfação. Ele não citou o autor e isso pouco me importou. Meu maior prazer foi finalmente ver que a imagem que eu tinha sobre mim tinha um reflexo. Eu gostava do que eu escrevia (nada extraordinário, mas eu gostava) e, além de mim, mais alguém reconheceu isso. Não precisava do reconhecimento dos colegas, não queria o prêmio Nobel (na verdade nunca contei que a autoria era minha) eu só queria de um eco, um testemunho de reconhecimento. As aulas de português com esse professor tornarem-se um prazer. Não porque ele me elogiava, acho que nem sabia meu nome. E não era por gostar da matéria. O principal motivo era porque eu sabia que esse professor conseguia ver em mim a mesma coisa que eu via. Era uma satisfação sentir-se vista como eu me via. Só que durou pouco. Mais ou menos com um mês, logo depois do início do ano letivo, ele ficou doente e teve que sair em licença médica. Senti tanta tristeza. Tudo voltou muito parecido com o antes, só que agora eu não tinha mais a frustração do não ser vista, isso já tinha acontecido. Essa experiência, por mais banal que pareça, é importante. Basear sua opinião sobre si mesmo através da própria percepção, e não só através do censo comum, é importante para desenvolver individualidade, singularidade e sentido. E os jovens de hoje têm conseguido realizar esse processo tão importante para o amadurecimento, para o tornar-se adulto? Não sei. Para mim, hoje os jovens parecem muito soltos de si mesmos e mostram pouco sentido singular no que fazem. Outro dia fiquei estarrecida com o que uma amiga me contou, que a filha contou sobre uma situação que uma amiga dela vivenciou. O enrosco já começa em como a história chegou até mim. Alguns adolescentes, entre meninas e meninos, menores de 18 anos, foram passar os dias na praia, beberam muito e liberaram seus instintos. O que queriam com isso, por que agiram assim, não souberam responder. Fizeram porque fizeram e porque todo mundo faz. O que extraíram da experiência? Nada, o impulso veio do nada interno. Eles conseguem relatar a história, mas não conseguem nomear o que sentiram, não vêem motivos para pensar ou refletir a respeito, foi do momento, essa é a máxima: o momento. Ou seja, pouco ou nada sabem sobre o que sentem, o que querem, muito menos algo sobre si mesmos. É uma história triste. É uma história vazia. Vazia de sentido, de singularidade, vazia do reconhecimento de si mesmo naquilo que é vivenciado. Não percebem, não conseguem saber que uma das formas possíveis do prazer está em ver-se e ser visto naquilo que se está vivenciando. Reconhecer-se, saber sobre si, apreciar a própria singularidade, além de prazeroso também é fundação para experiências que, além de gerarem prazer, também trazem sustentação para os momentos difíceis que a vida apresenta.

quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

A expressão do não falado



Outro dia conversando com uma colega sobre os pacientes internados em psiquiatria eu discorria sobre a dificuldade em lidar com quadros de extrema desorganização psíquica, nos quais delírios e alucinações estão fortemente presentes, e o trabalho psicológico ficava muito limitado e dependente da atuação do medicamento. Além dessa espera havia a possibilidade do primeiro remédio prescrito não ser o que o paciente melhor responde e ser necessária a troca de medicação. Mais tempo... Já vi quadros em que o paciente ficou várias semanas em surto porque os medicamentos inicialmente prescritos tinham efeitos inócuos, fazia-se a troca, pouca resposta e só na terceira tentativa o início da remissão dos sintomas. E esse não acertar de primeira nada tem a ver com má assistência. É característico da psiquiatria o método empírico na descoberta do medicamento que melhor o paciente responde. Nesse processo todo, muitas vezes, a família do paciente é quem mais sofre. É muito difícil e angustiante para eles compreenderem e aceitarem quando dizemos que o remédio X não estava mostrando um resultado esperado e por isso tentaríamos o Y. A família sempre pergunta: então agora é o medicamento certo? E a resposta é sempre meio evasiva porque é necessário aguardar o resultado. E a dose? Também outra caixinha de surpresas. É difícil em uma sociedade tão cartesiana compreender que a  psiquiatria é diferente nesse quesito. A família sofre muito nesse processo. E por isso, muitas vezes, a família precisa ser psicologicamente mais acolhida do que o paciente. Como a medicação tem seu tempo a família sente um desamparo "científico" e precisa ser cuidada. Sentem-se inseguros em suas decisões, se depositam confiança no que estão ouvindo, na instituição e nos psiquiatras. São mais incertezas, são mais pontos de interrogação do que respostas. Inclusive no que se refere ao desencadeador da patologia. Muitos sempre perguntam: por que isso aconteceu, qual a explicação? Pontos de interrogação e os tais "mistérios" na psiquiatria. Quando acompanha-se o dia a dia um paciente em surto, intuitivamente só de olhá-lo sabe-se como ele está, se houve evolução do quadro ou não. Algo na postura do seu corpo, algo em seu olhar já delatam um psiquismo confuso. Não há necessidade dele se expressar verbalmente, outras expressões já o denunciam. E é impressionante, quando a organização psíquica melhora, é a mesma sensação. Só de olhar para a fisionomia do paciente, para sua postura corporal  já se percebe a melhora. Fisicamente tudo muda. A intensidade muda. A expressão fica diferente. E essa mudança pode ser percebida de um dia para o outro. Lembro-me de um paciente jovem, em surto psicótico agudo, internado na clínica em que eu trabalhava. Estava muito desorganizado psiquicamente, apresentava delírios, pensamento e fala confusos, agitação psicomotora, persecutoriedade. No caso dele a medicação demorou semanas para fazer efeito e foi trocada algumas vezes.  Em toda visita seu pai saia chorando da clínica de tão angustiado por ver o estado desorganizado e confuso do filho. Lembro que após umas três semanas, logo pela manhã, olhei para o rapaz e vi o despertar de uma melhora, apesar de seu  discurso ainda manter-se empobrecido e confuso. Logo que encontrei o pai disse-lhe que iria se surpreender, que o filho estava melhor, seu discurso não havia mudado muito, mas que sua melhora era perceptível. O pai me olhou com um ar de interrogação e foi ver o filho. Após a visita presenciei esse pai sorrir pela primeira vez e me disse: "ele realmente está muito melhor". E esse melhor nada tinha a ver com a fala do rapaz, tinha a ver com a afetividade que se mostrando mais organizada. Inclusive esse rapaz mobilizou afetivamente muitos dos funcionários da clínica. Ele passava o dia todo sentado perto da porta pela qual os parentes entravam no pátio, repetindo que seu pai estava naquela salinha e que estava esperando-o para levá-lo para casa. Passava o dia todo lá, sozinho. Por incontáveis vezes eu abria a porta, mostrava que o pai não estava, dizia que ele viria outro dia, para não se preocupar, que estávamos cuidando dele. Mesmo assim, ele se sentava na escada, ao lado da porta, e dizia aguardar o pai: "ele está aqui, eu sei" (sic). Era a expressão do afeto.

quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

Cuidado afetivo

Ontem conversando com minha tia (que já citei em outro texto - QI coeficiente de inteligência, uma bobagem) versávamos sobre a tópica dessa infantilização que a sociedade está incentivando em seus jovens em função dessa rede proteção e garantias ilusórias proliferada por todos os cantos do planeta. Para ilustrar ela contou-me que em sua fase de menina, quando ia ao sítio de sua madrinha, andava de bicicleta em chão de terra batida, com "obstáculos", divertia-se muito, mas também machucava-se muito. Contou-me que uma vez ralou toda a perna e que não contou para a madrinha pois achava que a dor do machucado era menor do que a dor do unguento que ela passava (pelo que entendi tinha álcool misturado com mais algo). Porém, durante a noite disse gemer tanto que a madrinha foi ver o que estava acontecendo e . . . . . não deu outra, uma super compressa desse unguento e a outra dor. Continuamos a conversar sobre outras coisas, mas desde o momento em que ela me contou esse episódio comecei algumas divagações. Algumas lembranças também me surgiram (eu conhecia a madrinha da minha tia, era uma das minhas tias avós). Ao desligar senti que minha tia não tinha só contado uma história sobre molecagens. Ela também me contou uma história de carinho, de afetividade. Lembrei de algumas outras histórias dela e de sua madrinha: um dia fugiu de casa e foi se abrigar na madrinha, nas férias que lá passava e nos cuidados que recebia. Os cuidados dos quais vou procurar refletir nada têm a ver com os cuidados hoje tão difundidos como o top do cuidado para nossas crianças. Quero refletir sobre o cuidado afetivo. Os cuidados atuais envolvem dieta equilibrada, outras línguas, equipamentos de proteção, celular com gps, etc., mas e o cuidado afetivo? Quando tento denominar esse cuidado como afetivo não quero dizer a preocupação com o humor da criança ou seu estado emocional, mas do sentir o afeto e a realizar troca afetiva. Estou buscando falar de um cuidado que nada tem a ver com o normatizado, palpável e mensurável. Estou tentando me referir a um cuidado que é essencial para a criação dos laços e vínculos afetivos. Sem esse cuidado o que fica é o abandono, é o sozinho. Recentemente no grupo de estudos que faço parte discutimos sobre um texto psicanalítico cujo título é: "Figuras do cuidado na contemporaneidade: testemunho, hospitalidade e empatia". Nesse texto há uma abordagem social do indivíduo em que o autor para ilustrar esse conceito fez uso de uma história acontecida em Bagdá durante a ocupação americana em 2003. O diretor da Biblioteca e Arquivo Nacional do Iraque optou por não deixar a capital. Não quis refugiar-se em outro país e, na intenção de manter seus afetos presentes, de organizar suas emoções, criou um diário, que manteve na internet, com relatos acerca da situação vivida em Bagdá, como também algumas reflexões suas sobre o que lá acontecia. O diretor persistia em manter-se no Iraque apesar da precaridade e da pressão dos familiares para se exilar em Londres, dizia: "Se formos embora, ganha a violência". De maneira simplista o diretor não queria abandonar o que sempre lhe fez sentido e com isso também tentava não ceder ao mecanismo de defesa da insensibilidade, do anestesiar-se. Saindo do cenário, não vejo, não sinto e não sofro, fico anestesiado. Tornar-se insensível, abandonar a si mesmo a ao outro não foi a escolha do diretor. Porém a situação era de extrema insegurança e ameaça de morte e para manter seu psiquismos estável lançou mão do cuidar. Fazia o relato do que vivia diariamente, buscando testumunhas para o que acontecia. Buscava testemunhas para seu estado de ânimo, para o como mostrava-se não anestesiado. Com o diário sentia sensibilização, que seu sofrimento tinha eco. Esse cuidar envolve pelo menos dois. O cuidar do qual estou falando não é ir lá, tirá-lo da biblioteca, não é minimizar seu sofrimento ou eliminá-lo e sim acompanhá-lo . . . .  "apenas" acompanhar.  Ele queria companhia, testumunho ao que vivia diariamente. Era o que precisava. Assim sentia-se sendo cuidado e conseguir manter-se sensível. Voltemos a minha tia. Será que sentiria-se tão afetivamente cuidada se sua madrinha ficasse o tempo todo vendo-a andar de bicicleta  e toda vez que a visse cair corresse com um unguento? Ou será que sentiria-se sensivelmente cuidada quando no final do dia, ao sorrir, sua madrinha era testemunha de sua alegria? Aposto na segunda. É um acompanhar subjetivo que nada tem a ver com presença. É testemunhar e dar valor ao que o outro sente . . . . e vice-versa, o outro também testemunhar o que sentimos. Os momentos em que nos sentimos acompanhados vão sempre nos acompanhar e o momento que acompanhamos o outro também.

segunda-feira, 2 de janeiro de 2012

Curtas: O branco do ano novo



Há algum tempo não tenho seguido religiosamente a tradição do uso de roupa branca no ano novo. Ano passado meu vestido era vermelho. Neste ano usei branco, um vestido novo que ganhei do qual gostei muito. Só que, apesar de estar de branco e me sentindo bem, foi mais forte que eu, questionei o uso do branco, mais por uma reflexão de sentido do que qualquer outra razão. Isso aconteceu porque quando entrei no salão do local fomos passar o ano novo, que já estava cheio, quase todas as pessoas estavam de branco. Tive uma sensação de um ambiente todo igual, um sentimento de falta de originalidade que comecei a pensar no sentido do branco para o ano novo, afinal deveria ter algum. Pensei na paz, mas será que esse era o único sentido para essa tradição? Lembrei das baianas, sempre de branco, então pensei: "o sentido do branco para nós poderia ter relação com a cultura africana, do candomblé? Pensei no ano novo chinês, todo colorido, com muitos artefatos e figuras arquetípicas, então nosso branco também deveria ter alguma origem ligada a nossa cultura. Resolvi fazer uma rápida busca na internet e confirmei as hipóteses que tinha levantado. O significado do branco vem de nossa cultura africana, do candomblé, que significa paz. Mas acho que além da paz existem outros significados também muito importantes nessa passagem, já que simbolicamente remete ao fechamento de um ciclo e o início de outro. É um momento de reflexão, de balanço, de esperança e de projetos. O ano novo motiva. É o período propício para voltar-se ao que aconteceu e voltar-se ao que se quer que aconteça. Talvez o ano novo seja um momento em que passado e futuro se misturam, acontecem juntos. As imagens de um se fundem no outro e a partir disso criamos o que será possível. É um momento individualmente importante e coletivamente também. Nessa comemoração cabe, sem censuras, falar de nosso passado e falar de nossas aspirações. Nossas idéias, nossas divagações e por vezes lamentações são acolhidas. No ano novo vale sonhar sem ser questionado se aquele sonho é realidade ou devaneio. Faz parte, é um devaneio aceito e compartilhado por todos a nossa volta. Então, talvez, no significado do branco possamos acrescentar um sentido de passagem, um sentido de criação. Temos a experiência vivida realizando uma trajetória, transmutando-se em suporte para sustentar os impulsos do novo do que está por vir. Mais cores talvez venham enfeitar um processo tão bonito e momentâneo que é o enlace do passado com o futuro. Aos meus fiéis leitores e aos também eventuais desejo que o devaneio e a completude do vivido se integrem. Desejo um 2012 repleto de experiências e, em 31 de dezembro de 2012,  elas venham a fundir-se no que está por vir e criar o novo . . . . de novo. Feliz ano novo.