domingo, 1 de julho de 2012

Os cuidados da primeira infância

Hoje no jornal diário, que não tenho lido diariamente, li duas reportagens no caderno saúde que me remeteram ao tema dos cuidados da primeira infância. Ambas as reportagens abordavam casos de pessoas com doenças gravíssimas. O interessante é que uma delas era sobre um idoso, bem doente, e a outra sobre um bebê, que no segundo mês de vida desenvolveu uma doença muito grave. Ambos com riscos eminentes de morte. E, coincidência ou não, os dois em momentos opostos do ciclo da vida. Um próximo ao final desse ciclo e o outro logo no início. Só que no caso do senhor idoso a reportagem foi feita porque a família precisou tomar medidas extremas, além das medidas judiciais, para que o plano de saúde liberasse os procedimentos necessários. No caso do bebê foi um transplante de fígado que transcorreu sem as intercorrências capitalistas. Lógico que me mobilizei pelos dois casos, mas no caso do idoso senti aquela sensação de desamparo, tão doente, e tendo os procedimentos negados, como isso é injusto, afinal se nos sentimos doentes precisamos de cuidados. Por que não podemos recebê-los? Estamos nos sentido mal porque não podemos ser cuidados? Na área da saúde essa é uma equação muito complicada, ainda mais em um sistema de mundo capitalista, ou de superpopulação, ou de abismos tecnológicos e discrepâncias de renda, ou mesmo de profissionais desinteressados. Seja lá quais forem os motivos, mas os cuidados da área da saúde nos remetem a nossa primeira infância. Afinal nascemos totalmente desamparados. Não sobreviveremos se não houver um outro para cuidar de nós. Enquanto bebezinhos, quando sentimos uma estranheza, logo nos pomos a chorar (nosso único mecanismo de comunicação) e alguém vem ver o que está acontecendo. Recebemos o leite, o alimento, nos dão banho, nos trocam, nos agasalham, ou seja eu recebo sempre do outro o que estou precisando. E não dou nada em troca por isso, não sou desenvolvido para isso. Por enquanto eu só posso receber, não possuo desenvolvimento suficiente para dar. Não tenho capacidade, ainda, para cuidar de mim mesmo. Na verdade nem tenho ciência do que preciso. Só sinto que não estou bem e aí vem o outro e faz com que eu me sinta bem. Parece até uma descrição ingênua, infantilizada do que acontece, mas é isso mesmo, é uma "troca" ainda bem primitiva, pouco elaborada. Sinto-me mal e alguém faz com que me sinta melhor. Essa é nossa primeira experiência de "troca" com o mundo. E por isso mesmo, já enquanto adultos, quando não nos sentimos bem, nossa primeira experiência de cuidado será acionada, nos sentimos desamparados e é difícil aceitar que para que cuidem de nós precisamos pagar (dinheiro). Temos a lembrança de um cuidado doado e não de um cuidado trocado. E deveria ser assim sempre, se eu perdi a capacidade de me cuidar porque o outro não pode me ajudar nisso sem que eu tenha que pagar?   Sou psicóloga e a hora de acertar o valor da consulta é sempre angustiante tanto para o psicólogo quanto para o paciente. Ele está lá, sofrendo, com dores aparentemente inexplicáveis, como nos primeiros meses de vida cuja ciência dos motivos pelos quais está se sentindo mal é vaga, e aí um profissional da área dos cuidados psíquicos quer cobrar para cuidar. Um pouco ultrajante. E ainda o papel o psicólogo será muito parecido com o papel daquele outro da minha primeira infância. Irá cuidar no sentido do amparo, no sentido acolhedor, no sentido de cobertor, cuidados que eu recebia sem ter que dar nada em troca. Na medicina clínica existem os exames para comprovar, algo pragmático que mostra o que o faz se sentir mal e prescreve uma conduta com algo do externo, remédios, intervenções cirúrgicas, etc. E na psicologia? O que temos para cuidar são as sensações, as emoções, o sofrimento psíquico, um mal estar geral que nada tem haver com o biológico. Não prescrevemos nada que vem de fora (salvo casos em que há a necessidade de em paralelo de intervenção medicamentosa psiquiátrica), nossas "prescrições" estão sempre atreladas à história de vida do indivíduo, às suas experiências, ao que sente, ao seu desamparo, ao seu sofrimento, etc. O "material" que sempre usamos é de "posse" daquele indivíduo que está lá na nossa frente se desnudando e buscando sentir-se melhor. E temos que cobrar por isso ..... como é difícil. E para o paciente também é muito difícil pagar por isso. Sempre há certa transferência de raiva na hora de pagar, mesmo quando sente que está sendo cuidado. Em sua primeira infância esses cuidados sempre foram naturais e ao tornar-se adulto, porque não pode ser como antes? Quando adultos, ao sentirmos que não estamos capazes de cuidar de nós e precisamos de um outro que nos ajude nisso, sempre nos remetemos a nossa primeira infância, em que os cuidados eram espontâneos e, via de regra, faziam com que me sentisse melhor. Acredito que até por isso, quando doentes, do corpo ou do psiquismo, é muito difícil lidar com essa troca financeira que o modelo de saúde da atualidade nos impõe. Acredito que este possa ser um do motivos que o idoso sofra tanto ao necessitar de cuidados e não recebê-los, afinal à medida que se vai envelhecendo a capacidade de cuidar de si mesmo vai diminuindo e ele se aproxima psiquicamente de sua primeira infância. Talvez até por isso as matérias tenham me chamado tanto a atenção. Ambos os casos falavam da primeira infância, do desamparo e da necessidade do cuidado desvestido de troca, apenas uma necessidade primitiva de receber para continuar vivo, que em outro momento de nossa vida foi tão real e tão vital.

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