quarta-feira, 8 de junho de 2011

Furor Curandis


Há algum tempo eu ouvi de uma analista, de quem gosto muito que Freud já nos alertava sobre o furor curandis, a excessiva necessidade do analista curar seu paciente de seus sintomas sem dar ouvidos ao que ele quer. Muitas vezes esse é o desejo do analista, eliminar os sintomas, mas será que é também do paciente? Ontem, em um encontro psi falamos bastante sobre isso, não só no âmbito de nossos pacientes como também da relação cotidiana com as pessoas. Primeiro vou estabelecer o setting psicológico para a partir disso chegar ao cotidiano. Aos que não apreciam muito essa tragetória sugiro que pulem essa parte, e aos que não se incomodam ... vamos lá. Uma colega uma vez atendeu uma paciente com sintomas depressivos, traços obsessivos, com uma história de vida recheada de muito sofrimento, desde a mais tenra infância. O sofrimento de sua história transbordava na mesma medida dos sintomas que desenvolveu, principalmente os obsessivos. Ao mesmo tempo que relatava fatos de imenso sofrimento, pouco contato fazia com eles, se fixava muito no dia a dia, em como as coisas deveriam ser e o quanto ela não conseguia modificá-las para o que achava certo. Vivia muito sob a espada do certo e errado. Isso trazia sofrimento, sem dúvida, mas nem se comparava ao sofrimento que ela conteve durante tantos anos através dos mecanismos obsessivos. Os traços obsessivos a ajudaram a desenvolver-se e construir algo ao seu redor. Isso não quer dizer que as pessoas à sua volta não foram afetadas por seus sintomas, é claro que sim. Mas também foram construídos solos férteis, com áreas inférteis, e lugar para crescimento onde outras coisas puderam surgir. O que minha colega fez não foi escancarar para a paciente que seus sintomas depressivos e seus traços obsessessivos eram doença e por isso precisavam ser curados. Ela a ouviu, tentou entender o ela queria, muitas vezes nem o paciente tem essa clareza, e a ajudou, andou junto na trajetória, no caminho que a paciente estabeleceu. Nesse caso, a paciente queria sofrer menos no dia a dia. Seus traços obsessivos se mantiveram, menos intensos, seus surtos de fúria findaram. Hoje ela sofre menos até porque seus sintomas perderam intensidade, mas, de outra forma se mantém já que foram desenvolvidos, por ela, para lidar com vida. Sua história sofrida continua lá, não quer mexer, dói demais. Ela hoje está bem, à sua maneira. De acordo com o senso comum, não, mas de acordo com ela, sim. É uma história muito bonita, a natureza humana foi preservada.
Farei agora o transporte dessa experiência analítica para o cotidiano e nossas relações pessoais. Trabalhamos em empresas, vivemos em sociedade, o coletivo faz parte de nossa natureza (deveríamos saber lidar com ele) mas o tempo todo buscamos transformar o que está a nossa volta de acordo com o nosso desejo. É difícil aceitar a natureza daquilo que é. Um clássico exemplo é o ambiente corporativo. Uma empresa tem uma filosofia própria, um jeito próprio para lidar com seus processos fabris, comerciais, administrativos e com os que nela trabalham. Só que o que mais acontece dentro desses ambientes é as pessoas tentando mudar o modo de funcionamento da empresa para como acha que é melhor. Tentam mudar os colegas de trabalho na busca ilusão que o ambiente adapte-se ao seu jeito, e não o contrário, adpatar-se ao ambiente. É um esforço inútil, e tal como o analista que teima que o paciente tem que fazer o que ele acha, o indivíduo também tenta isso no seu dia a dia. O ser humano tem em sua natureza primária uma pré-potência intensa, um egoscentrismo primário, afinal, nascemos tão desampardos, se o outro não cuidar de nós morremos. Entrar em contato com isso é muito assustador. Porém à medida que nos desenvolvemos, que vamos tendo mais autonomia, essa pré-potência diminui para dar espaço para  a natureza do coletivo. Fazia parte da sobrevivência não estacionar no modelo egocêntrico, precisávamos nos tornar seres coletivos, o bando precisava e nós e nós do bando. Só assim continuaríamos sendo parte de um bando e sobreviveríamos. Só que a sociedade de hoje não nos proporciona, não nos solicita mais (ilusoriamente) que nos tornemos seres coletivos e com isso corremos o risco de estacionarmos no modelo pré-potente e egocêntrico de nossa natureza. Hoje as famílias não reforçam mais a necessidade do quid pro quo, quando os filhos já desenvolveram certa autonomia. Não estabelecem esse limite: fiz e continuarei a fazer a minha parte, agora chegou a hora de você começar a fazer a sua. Não é abandonar, nem deixar de se preocupar, é muito mais que isso, é deixar crescer e desenvolver-se de acordo com a sua natureza. Como é gostoso aquele bebezinho, aquele serzinho que depende nós. Nos sentimos tão potentes, tão importantes e assim nos distanciamos de como somos impotentes e talvez menos importantes do que nosso egocentrismo gostaria. Tal qual o analista que só se vê bom quando retira o sintoma do paciente, o  indívduo só se sente potente quando muda o ambiente. Será que nossa potência tem sempre que estar ancorada em grandes feitos? Será que nossa potência não é, todos os dias, nos relacionarmos com o outro conciliando como somos e como o outro é? Vale pensar.

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