quarta-feira, 7 de setembro de 2011

A morte

Quando fazia a graduação, na cadeira de filosofia, a professora pediu para que lêssemos "O que é a morte" da coleção primeiros passos. Faz tempo, mas certo conteúdo me marcou. Fez-me lembrar um filme do qual gostei muito - Fanny e Alexander do diretor sueco Ingmar Bergman, cenas intensas, conflitos velados e a morte como determinante, como presença e experiência. Nesse "livrinho" o filósofo conta que houve períodos na história que a morte era integrada nos rituais de vida. Quando alguém da família ficava gravemente doente, quando se percebia que a morte logo chegaria, ou mesmo se repentina, havia um ritual. Os familiares próximos, principalmente as mulheres, cuidavam dos doentes e as crianças não eram afastadas do convívio. Após a morte o corpo era velado por dias na casa em que morava e as crianças continuavam fazendo parte do ritual. Não lhes era tirada essa experiência em nome de certa saúde emocional. Então, desde a mais tenra idade a morte era parte da vida . . . .  uma morte anunciada não era um trauma, algo marcante, era algo triste que seria vivido por todos. Lógico que se essa morte, para a criança, fosse de seu pai ou mãe haveria muito sofrimento, a falta de um deles, certamente uma morte traumática em função daquela falta, mas não porque a criança presenciou o natural. Bem . . . . . em algum momento da história resolveu-se colocar a morte como algo secundário. Surgiram os hospitais e as pessoas passaram a não morrer mais em casa, junto aos familiares, uma morte com mais "conforto". As crianças passaram a não viver mais as angústias da morte, da enfermidade, lhes foi entregue com louvor o mito do felizes para sempre. E elas, crianças, com muita pulsão de vida e sendo conduzidas por adultos apropriaram-se desse mito. E os adultos não querendo mais lidar mais com suas angústias expulsaram a morte do cotidiano. Ela é tão assustadora que deu-se um jeito. Muitos humanistas e filósofos falam sobre a morte, sobre essa angústia de aniquilação que o ser humano combate diariamente, desde que nascemos temos instintivamente medo da morte, e até por isso nos temos nos mantido vivos por tanto tempo. Simplificando, reduzindo: a morte também produz vida. É um constante não querer encontrar-se com ela, não querer findar-se e . . . . . multiplicar.  Ter filhos  é também necessidade de sobrevivência, de minha genética espalhar-se, não findar-me através dessa herança em meus filhos. A morte tem significados muito importantes em nossa vida em nossa constituição com ser, e por que será que tem sido tratada com tão pouca significância pela sociedade atual? Percebo crescer certa falta de respeito em relação a morte como se fôssemos potentes o suficiente para enganá-la. Não somos, mas nos vemos potentes. Há também outro tipo de morte, a "morte d'almas". Quando a vejo sinto-me sufocada e totalmente impotente. Quando há a morte do corpo existe certa conformidade que aquela vida se foi e nunca mais estará entre nós, mas quando há só "morte d'alma", vemos aquela pessoa na nossa frente, um corpo que se move, um corpo que fala, um corpo que se alimenta e nada mais. É um corpo que vaga com olhar e apetite vazios. Tudo transpassa aquele corpo, nada fica e nada emite. A imagem de um zumbi. Ouço todos os dias histórias de vida muito tristes, compadeço com o sofrimento alheio, mas quando percebo que lá naquele Ser pouco som é emitido, que já existe um findar de sua existência psíquica, entristeço. Hoje acredito que está tudo errado em relação à morte. Fingimos que ela não existe, achamos que quando temos um diagnóstico complicado a medicina sempre terá uma solução. Não falamos sobre isso com ninguém, tanto sobre nosso medo de morrer como também pelo medo que temos de nossos entes queridos morrerem. Tenho uma amiga com a qual vez por outra falamos sobre o medo da morte de nossos pais. São idosos, os quatro, e vira e mexe nos deparamos com situações em que a "dita", que tanto evitamos, mostra sua presença. No começo tocávamos no assunto um pouco constrangidas, mas hoje falamos abertamente . . . . . entre nós. Por que tem que ser um assunto tabu? Existe uma aura de superstição que, falando da morte estamos atraindo-a. Além disso há distorção cômoda na compreensão de discursos que envolvam o tema morte, um rótulo de pessimismo. Mas a morte existe, está aí, o que tem de pessimista em falar dela? Só falar dela é pessimismo, mas abordar o assunto quando pertinente . . . .  um tabu? Não dá para lidar com a vida sem lidar com a morte, em algum momento a vida vai exigir isso e aí, pegos de surpresa? Nossos filhos pegos de surpresa? Um dia li um artigo sobre resiliência e que o que mais aproveitei foi o seguinte: há uma tribo na África que, quando uma mãe com filhos pequenos / adolescentes morre ou entra em depressão, essa tribo elege alguma mulher da comunidade para assumir esse papel. Acreditam que a criança precisa dessa contenção e figura, desse acolhimento em ambos os casos. Simplesmente maravilhoso. Essa tribo fala da morte, e por falar em morte ela cuida daqueles que foram diretamente atingidos por essa morte, o sofrimento é amparado. A mãe em depressão é muito parecida com uma mãe que morre, o deprimido se retira da vida, não consegue mais habitar emocionalmente seu lugar. Fedida, psicanalista francês, coloca que não é porque a pessoa está deprimida que vai para o quarto, o deprimido primeiro se retira da vida e aí sim vai para o quarto. Outra magnífica colocação dele: "Se existe uma doença do vivente humano ela seria por definição a depressão". Doença do vivente humano. Essa tribo fala de morte, física e emocional e, por essas mortes terem lugar em sua cultura, em seu ritual, seu efeito não é tão devastador. A morte tem um lugar de respeito, de pertencimento nessa tribo, e esse lugar produz vida. Os "em sofrimento" tem lugar . . . . . um lugar de acolhimento.

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