domingo, 4 de setembro de 2011

Curtas: Nossa história nunca é só nossa história


Somos todos muito egocêntricos, acredito ser de nossa natureza. Para sobrevivermos quando muito pequeninos precisamos acreditar que só existimos nós para cuidarem. Sem os outros nossa sobrevivência é ameaçada e muito provavelmente sentimos o quão frágeis somos. E um dos sintomas de nosso egocentrismo é acreditar que nossa história, o jeito que somos, o que pensamos, são frutos só de nós e das experiências que vivemos. Ledo engano. Somos a mistura, a composição das histórias de nossas avós, bisavós, de nosso país e de nossa cultura. Nos desenvolvemos dentro dessa sopa de histórias e não dá para separar as partes, o que é única e exclusivamente meu e o que faz parte do outro. Tive uma paciente septuagenária, um encanto, com tanta vida que me espantei dela nessa idade fazer análise. Não me esqueço do dia em que me contou que sua bisavó tinha sido índia e foi pega a laço para satisfazer os desejos sexuais de seu senhor. Havia tanta indignação e sofrimento em seu comentário e para ela, seus sofrimentos, suas dificuldades não eram valorosos o suficiente em relação ao sofrimento que imaginava sua bisavó ter enfrentado. Foi uma violência e essa marca violenta está impressa nela até hoje, após 3 gerações. Uma marca de ruptura, do controle, do sequestro e da submissão. Tem um psicanalista francês - Fedida, que refletiu da seguinte forma: "É preciso toda uma vida para descobrir a análise desde que as vidas desta vida e seus mortos que não morrem sejam o material em movimento de uma tectônica da teoria." Os mortos que não morrem, muito real e muito vivo, nossa história é repleta de mortos que não morrem. Só que a tendência de hoje é não olharmos para essa nossa antiga história viva, só olharmos para frente, como se as respostas estivessem fora de nós, além de nós. As pessoas tornam-se tão vazias e seu egocentrismo fica cada vez mais exacerbado. Parece até um movimento de sobrevivência, já que não me sustento naquilo que me formou, minha herança histórica, ajo de maneira a acreditar que tudo tem que ser feito para mim. Volto a ser bebê, sem apreender quem sou, o que sou e só querendo que me preencham. Temos muito a aprender sobre nós com nossos mortos vivos, mas enquanto não os encararmos serão somente assombrações e não parte de nosso eu. Tentar construir-se, ter a equalização entre o que construímos como próprio e o que carregamos há gerações, além de não ser fácil, é uma ferida narcísica. Não sou puro, não sou único, já foram antes de mim e serão após, mas enquanto sou eu, como posso ser o que me impulsiono, ser com e através de toda a história que me constituiu. Nossa história nunca é só nossa e quando a renegarmos estamos colocando à  margem nossa essência.

4 comentários:

  1. Muito interessante seu texto. Aprendi muitas coisas que sei com minha avó e tenho o jeito dela. Todo mundo diz que me pareço muito com ela, mas eu vejo minha avó poucas vezes. É herança genética mesmo. É como se eu soubesse como ela se sentiu quando meu avô estava vivo e ela tinha que ficar quieta e aceitar que ele quem ganhava dinheiro, sinto que tenho que estudar para não sofrer como minha avó sofreu.

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  2. Olá Lorena,

    Que bom que você tem visto sua vida também através da vida de outros. Eles tem muito a dizer sobre nós.

    Abraços,
    Patrícia

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  3. Poxa Patricia, esse seu post foi daqueles do tipo "enfia a faca e gira com vontade", pq realmente me atingiu profundamente...

    Qdo adolescente tinha lido um desses textos que dizem ser de Shakespeare que dizia algo como " há mais dos seus pais em você do que você supunha" e eu tinha ficado revoltada, pq pensava que isso era um absurdo...

    Hoje eu vejo a mais bela verdade nisso, a cada dia percebo o quanto meus pais me influenciaram ( e influenciam!) na minha vida!

    Claro, existem muitas outras pessoas que contribuíram para eu ser como sou hoje, e é sempre gostoso saber que somos uma mistura de tudo o que acontece e de todos ao nosso redor!

    Um beijo!

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  4. Olá Patrícia,

    Não pude deixar de rir um pouco. Não por achar engraçado seu comentário, mas pitoresco. Achei a imagem descrita muito original. Corremos a vida toda em busca de não repetir o modelo de nossos pais e quando mais maduros percebemos que há boa parte desse modelo em nós. É irônico e real e com um sabor meio amargo. Para quem gosta de chocolate amargo......

    Abraços,
    Patrícia

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