domingo, 6 de novembro de 2011

Curtas: Politicamente correto, solo fértil para . . . . . .


Trabalho em uma instituição psiquiátrica e tenho ficado cada dia mais impressionada com a quantidade de pessoas que são internadas com distúrbios de desorganização psíquica grave cuja família parece vir de um comercial de margarina. Ouço o relato da família sobre o desenvolvimento do paciente e fico estarrecida, perdida porque tudo parece tão no lugar. Fico me perguntando: o que aconteceu para aquele sujeito ter se desorganizado tanto? Os relatos dos cuidados são tão redondos. . . . . . os discursos de afetividade são tão amorosos . . . . que fico me perguntando, onde está a "loucura" nessa família. É fato que, para um sujeito desenvolver um transtorno mental grave a ponto de precisar ser internado, há uma disfunção familiar, é sistêmico. A desorganização psíquica é intrínseca nas relações parentais, não há como dizer que a criança não é afetada pela desorganização do adulto. Mas, no passado, essa desorganização era escancarada, não havia a casca do politicamente correto para encobrir as disfunções familiares. Hoje, os adultos colam em seus corpos maneiras de lidar com o outro e a naturalidade fica completamente esquecida, fica obsoleta. A naturalidade não é ferramenta para esconder-se. Na verdade a naturalidade hoje é banida dos círculos sociais, afinal pode ser uma denunciadora do que não está bem. Só que se vemos o que não está bem existe a possibilidade do cuidar . . . . . . mas também  alguém pode apontar. Você não sabia? Você não viu? Você não leu? A sociedade de hoje prega sucesso, perfeição, maneiras de usar todo o seu potencial, é de uma prepotência e arrogância intensa. Como uma mãe vai poder admitir que acredita ter deixado de ser suficientemente boa em alguma coisa. Simplesmente, se assumir isso, será apedrejada em praça pública. Terá cometido o maior dos pecados, terá admitido que errou, que surtou, que cansou, mas também existe a possibilidade dela ter, junto com tudo isso, cuidado, acarinhado, amado e acompanhado. Atendo as famílias e as vejo dissociadas. Tudo foi tão bem. Quando criança o paciente era ótimo, na escola ótimo, os pais sempre ótimos, sempre acompanhando . . . . de repente tudo mudou. E a família fica me dizendo isso de uma maneira tão superficial que fico procurando onde está o encoberto, o que não estão me contando, como descobrir isso? Antes do politicamente correto, dos livros com dicas de educação perfeita, de faça isso que acontecerá aquilo, havia espaço para a ira, o ressentimento, o ciúme, a loucura, a desorganização, mas também para a união, para o amor  e o carinho. Hoje tudo tem que ser plástico, perfeito. Ninguém pode ser pessoa, sujeito desejante, frustrado, amoroso e raivoso. Tem que ser perfeito e politicamente correto. Se o politicamente correto é trocar a fralda do meu filho a cada duas horas é o que vou fazer. Não vou esperá-lo chorar, ou não vou no cansaço do cuidar tirar um cochilinho fora de hora e acordar com meu pequeno chorando precisando de ajuda. Não . . . . .  para ser boa mãe, politicamente correta eu tenho que ficar olhando no relógio a hora de dar o suquinho, a hora da mamadeira, a hora do cochilo e não ter espaço para colocar o que de fato estou sentindo junto com aquele serzinho, que pode ser medo, aflição, ignorância, amor, cansaço, um monte de coisa junta. Não, vou abstrair tudo o que sinto e no lugar colocar o que deve ser feito para que meu filho tenha a melhor assistência possível. E aí ele cresce no vazio, e a mãe educa no vazio e aí mais tarde interna o filho em uma instituição psiquiátrica e conta uma história de vida do filho que não preenche uma folha, tudo meio vazio. Mas para preencher esse vazio temos o politicamente correto, ajuda na manutenção dos códigos sociais e diz que humaniza mais as relações, será?

3 comentários:

  1. Patrícia

    Sempre que eu vejo isto acontecer, eu lembro do livro do orwell, 1984. E penso que em casos como este quem triunfa é o grande irmão.

    Acho bem desesperador.

    Beijos

    Cláudia

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  2. Oi Cláudia, também acho desesperador.

    Beijos,
    Patrícia

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  3. Patricia,

    Esse seu texto me lembrou um mais antigo, um que você falava a respeito de perfeição...

    Hoje, o importante é ser perfeito. Não importa o quão falso seja o "perfeito", o importante é demonstrar isso... Mesmo que sejamos fracos às vezes, tenhamos dúvidas sobre qualquer coisa, tenhamos ainda muito o que aprender... Não, não podemos transparecer nossas fraquezas!

    Imagine só, o que os vizinhos, os colegas, a sociedade irá pensar se formos "reais" e não a fictícia "perfeição"??

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