domingo, 10 de fevereiro de 2013

A Mentira

Advirto: não leia antes de dormir, pode causar insônia.
Por esses dias vi um filme na televisão cujo título era: "O primeiro mentiroso". O filme é regular, porém achei o argumento bem interessante. Era sobre uma sociedade em que não existia a mentira e muito menos o conceito de verdade, afinal um não existe sem o outro. Era tudo concreto. As pessoas falavam o que pensavam, sem reflexões sobre o que pensavam, falavam apenas, assim se estabeleciam as relações humanas, se é que se poderia definir "aquilo" por relações humanas. Meio complicado de entender, vou dar alguns exemplos: uma moça foi sair com o protagonista e disse que estava saindo com ele só para preencher o tempo porque na verdade ele não era o tipo dela. Disse antes de sair que iria se masturbar, que ele chegou muito cedo e atrapalhou esse seu plano. A secretária do protagonista disse que não tinha anotado nenhum recado porque o chefe iria demiti-lo, que detestava trabalhar com ele, o achava um fracassado. O chefe quando foi demiti-lo falou que talvez não fizesse isso hoje porque se sentia mal com isso e voltaria amanhã para fazê-lo. O protagonista trabalhava em uma empresa de documentários, os filmes nessa sociedade eram só sobre os fatos acontecidos na história do mundo. O protagonista trabalhava com o século 14, século da peste negra, e o iriam demitir porque seus roteiros eram muito deprimentes. Lógico, esse século era deprimente diz o protagonista. Os fatos eram relatados exatamente conforme o acontecido, sem licença poética, sem ficção, sem ilusão, sem histórias paralelas. Era o que era. Ponto. Um vizinho do protagonista ao ser perguntado como estava relatou que passou a noite vomitando por ter tomado muitos comprimidos para se matar. Os diálogos eram muito chatos, depressivos. As pessoas só falavam delas e não viam ao outro. O outro não era levado em consideração em seus pensamentos, só existia o si mesmo. Quando isso mudou no filme? O protagonista foi demitido e seria despejado, por não ter dinheiro para o aluguel. Foi ao banco tirar o que lhe restava na conta. Ao chegar no banco a caixa disse que o sistema estava fora do ar, mas que ele poderia dizer qual a quantia que tinha ........ nesse momento apareceu uma imagem de um "curto" em seus neurônios e ao invés de dizer $ 300 disse $ 800, o que não era verdade. A caixa foi lhe dar o dinheiro e nesse exato momento o sistema voltou. O protagonista ficou arrasado .... a caixa consultou o sistema o informou: "aqui diz $ 300, o senhor disse $ 800, acho que nosso sistema está com algum problema, então vou lhe dar os $ 800". Bizarro, para nossos dias. Totalmente bizarro, naquela sociedade não existia a compreensão, o conceito do não fato, da não verdade, o que era dito por alguém era o que era. O protagonista saiu de lá confuso e foi visitar sua mãe que estava em um asilo. O slogan do asilo era: "lugar para deixar pessoas já sem esperança de vida e que foram abandonadas por seus parentes". A mãe estava morrendo e em seus últimos minutos dizia ao filho que estava com medo de ir para o vazio, porque a morte era o vazio. O filho, comovido com essas palavras, começou a dizer para a mãe que sabia que a morte não era um vazio e sim um lugar com mansões, que ela iria encontrar com outros parentes já mortos e teria uma eternidade de felicidade. A mãe morre com um sorriso e as enfermeiras e médicos que estavam no local se impressionam com o que ele sabia e começaram a divulgar sobre um homem que sabia coisas que ninguém mais sabia. Naquela sociedade não se questionava o dito. O dito era fato, o falado era A verdade. Se os neurônios do protagonista sofreram um "curto-circuito", os meus começaram a bombardear reflexões sobre mentira, verdade, o outro, o lugar da mentira nas relações humanas, etc. E ficou tudo muito confuso, mas também bem interessante. Adoro o complexo, o paradoxo, os acho tão parte do humano que resolvi colocar minhas conexões reflexivas para funcionar. Em nenhum momento me atrevo a pensar que chegarei a alguma conclusão, acredito que muitas teses de sociologia, filosofia, psicologia já foram feitas sobre o assunto. Vou refletir sobre mentira e verdade a partir dessa sociedade descrita no filme. Como os fatos eram só o que existia, desejo ou imaginação estavam fora de questão. Se alguém contasse que foi demitido, nessa sociedade o dito era: "tá ferrado, você é um fracassado". Quem de nós já não consolou uma amiga ou um amigo que perdeu o emprego e nossa fala foi: "tenho certeza que você conseguirá outro emprego logo, é uma questão de tempo, você é tão qualificado, etc.". Mas isso é verdade? Você tem certeza que será assim? Você não sabe, mas mesmo assim diz algo que não sabe porque acredita que isso possa ser verdade e também gosta muito daquele amigo e acha que ele merece essa injeção de ânimo. Dizer: "cara você tá ferrado, já passou dos 40, o mercado de trabalho está muito competitivo, tem gente mais qualificada que você, muito difícil de se recolocar", beira a crueldade. É chutar cachorro morto na calçada. Esse é o cenário, mas será que por ser esse o cenário não haverá outra alternativa? É uma mentira proporcionar consolo ao outro ou é uma ilusão necessária para que outros cenários possam ter lugar? Não só o concreto.  Por que chamar de mentira? A palavra mentira vem tão carregada de preconceito e moralidade que rejeitamos automaticamente dizer que a utilizamos. Mas fazemos isso sempre, vários dias contamos "mentirinhas" para nós mesmos e para outros. Essas mentiras são: pegar os fatos nus e crus, horrorosos, sem nuances e tons, e os colorir com nossos desejos, com nossas expectativas. Esse é o subjetivo, o que nos movimenta, o que dá sentido para continuar. O mentir está ligado ao desejo. Não estou falando sobre mentiras patológicas, o mentir para se sobrepor ou tirar algo do outro. Estou falando do lugar da mentira na construção do meu eu, do outro e dessa relação. E ao mesmo tempo sobre o lugar da verdade nessa mesma construção. Será que existe verdade e mentira ou existe o trânsito entre realidade, desejo e ilusão? Vamos falar das crianças, as super hábeis no universo desse trânsito. Não conheço criança alguma, e nem adulto que não tenha contado muitas mentiras quando criança. Por que criança faz isso com frequência? Por que a criança tem interesse em realizar seus desejos na hora em que aparecem, e por incontáveis vezes para que possam fazê-lo, precisam usar da sabedoria da mentira para os satisfazer. Ainda têm dificuldade em postergar a satisfação do desejo. E os adolescentes, então, são os mestres da mentira.  Estão na fase de se desligar dos modelos paternos e maternos e descobrir o seu modelo. Será que "mentira" e desejo andam juntos? Por que julgar tanto uma mentira e não questionar mais os motivos que me fazem usá-la? O tema vai ficando complexo. Existem tantos nuances na qualificação de verdade, mentira, ilusão, imaginação, que não há fechamento, só aberturas. E assim nos expandimos e não ficamos naquele mundinho concreto, e cinza, em que fato é fato, e só. Outro questão que quero abordar é o quanto no filme eu percebi que essa aparente autenticidade, em dizer tudo o que penso, era, não exatamente uma autenticidade, um egocentrismo extremo. Não há o outro e seus sentimentos, só os meus. Não importa que o que eu diga vá afetá-lo, deixá-lo triste ou abalado, eu digo o que digo e sou assim. Não havia espaço para a afetividade com o outro. Não que eu esteja defendendo que mentir para o outro é considerá-lo, longe disso. Mas considerar o que o outro sente, o que sinto pelo outro, estabelece a comunicação entre a realidade, imaginação, ilusão e desejo. 
O tema é complexo, mas tão interessante ....... são tantas as verdades, e tantas as mentiras, e tantos entres. Por que o verniz social é necessário? Por que deixamos esse verniz muitas vezes modelar nosso eu? Qual o espaço que posso ter nesse trânsito entre social, eu e o outro, afinal eu preciso do outro e o outro também precisa de mim? Mentimos para nós mesmos? ............ Boa reflexão para todos.