segunda-feira, 23 de julho de 2012

O céu é o limite?

Vez por outra leio reportagens que me deixam confusa . . . . .  confusa no sentido de não conseguir formar uma opinião minimamente consistente. Por outro lado é bom porque me faz pensar . . . . adoro pensar. Li hoje pela manhã na folha de São Paulo que atletas femininas estão tomando medicamentos para alterar seu ciclo menstrual ou eliminar a TPM  para que possam participar com excelência nas competições. Para que essas sensações e incômodos desse período não afetem seu desempenho. Essas intervenções químicas no organismo, com o intuito de fazer com que o organismo tenha seu melhor rendimento, dê aos atletas a oportunidade dele não atrapalhar, sempre acendem uma luz amarela no meu cérebro. Não sou contra intervenções químicas, muitas são necessárias para estabilizações de quadros ou mesmo para o planejamento familiar. O que me faz pensar nessa matéria é o motivo que leva as atletas a interromperem seu ciclo menstrual, é para que tenham um desempenho ótimo. Sua profissão é a competição, portanto, qualquer coisa que venha atrapalhar seu rendimento deve ser eliminado. A menstruação é uma delas, um ciclo natural do organismo, que teoricamente deveríamos respeitar. O organismo feminino foi concebido com essa característica e quando o eliminamos porque nos atrapalha, em parte estamos encapsulando algo que só é próprio da mulher. Bem . . . . se algum atleta estiver lendo isso com certeza deverá pensar: "é bem coisa de psicólogo que não tem mais o que fazer, já que vencer é muito mais importante do que ser mulher". Não posso deixar de concordar, esse é seu objetivo de vida. Sinto um dilema, o esporte é o que movimenta aquele indivíduo, mas ao mesmo tempo negar sua própria condição . . . . . socorro . . . . . qual o limite entre o que se é e o que se faz? Saindo do mundo dos esportes, entrando no mundo do desempenho escolar. Hoje estão prescrevendo para adolescentes medicamentos que aprimoram seu rendimento no aprendizado. Não estou falando da Ritalina (medicamento largamente utilizado hoje para os "diagnósticos" de TDAH (transtorno de deficit de atenção e hiperatividade), mas de medicamentos que estimulam o cérebro do adolescente de maneira que se concentre mais e tenha um desempenho nos estudos mais eficiente. É necessário? Estão sendo denominados até de pílulas da "inteligência". Por que não usá-los? Afinal não se está "inventando" nada, só turbinando o cérebro e por isso o adolescente terá chances maiores de entrar em boas universidade e provavelmente ser um profissional bem sucedido. Isso é algum crime? Vivemos em uma sociedade competitiva e o valorizado é o destaque. Mas, até que ponto, a pessoa não "fabrica" uma idéia sobre si mesma, volta-se só para o externo, para o bem sucedido. Essas temáticas me lembram o livro "Admirável mundo novo" escrito por Aldous Huxley em que as pessoas eram todas "felizinhas", todos os dias tomavam a pílula da felicidade (SOMA). Também eram geneticamente concebidos para as "castas" às quais iriam integrar desde o seu primeiro dia de vida até sua morte. Não havia mobilidade. Era um mundo "perfeito", com equilíbrio social e emocional. Tudo planejado, nada questionado. Ouço com frequência relatos de mulheres ou homens que foram a seus clínicos gerais, ou médicos de confiança e queixaram-se da dificuldade de lidar com a pressão no trabalho, que estavam meio tristes e o médico prescreveu fluoxetina (anti-depressivo). Ou seja, o aprendizado diário para lidar com o cotidiano, com as angústias, com os conflitos é substituído por um medicamento que gera bem estar, por isso tudo fica mais fácil. O que acontece quando tira-se esse medicamento . . . .  tudo volta a ser como era antes, o vestido a ser de chita, a carruagem a ser abóbora e os cavalos, ratinhos. Como equilibrar isso? Não estou levantando a bandeira do sofrimento é importante,  mas como podemos modificar algo em nós se não entramos em contato, se não lidamos com nossas deficiências, com nossas impotências? O adolescente que para destacar-se turbina o cérebro, aparentemente para ingressar em uma faculdade, vai continuar a fazê-lo durante a faculdade para dar conta e vai continuar a fazê-lo quando ingressar em uma empresa, afinal, para virar diretor, tem que se destacar e por isso o cérebro tem que ter o máximo de seu rendimento. E aí, se todo mundo começar a tomar o remédio da inteligência e todos conseguirem dar o máximo de seu desempenho, o que fazer? A indústria farmacêutica vai procurar novos medicamentos? Então, para ser uma atleta mulher, eu tenho que suprimir meu biológico mulher? Quando não for mais atleta, aí meu biológico pode existir naturalmente? Que confusão. Qual é o limite entre o que vem de fora e o que sou por dentro?


domingo, 8 de julho de 2012

A construção de nossa história

Era uma vez . . . . . Cuidei de um paciente que sofria muito com os conflitos vivenciados com seus pais. A maneira como foi educado, a maneira como via que conduziam as própria vidas, a maneira como não se sentia aceito e visto, e outras tantas coisas. Certo dia, em consulta, depois de alguns acontecimentos extremados resolveu que o "problema" não eram os pais, mas ele mesmo, justificando tal afirmativa através da análise que fez da história de de vida de seus pais e de como ele, ainda bebê, era difícil. Concluiu que a culpa era dele. Perguntei-lhe o por quê da necessidade de desculpar seus pais e culpar a si mesmo? E mais, o por quê da necessidade de haver um culpado? Ficou me olhando como se eu tivesse dito tudo isso em hebraico. Naquele momento não fez sentido nenhum para ele a ausência de "culpados", afinal alguém é sempre o culpado, sejam os outros ou sejamos nós mesmos. Ao nascermos, seja lá em que família for, já haverá uma história escrita anterior ao nosso nascimento, com suas marcas, seus brasões e, ao nos inserimos nela, ao iniciarmos nossa existência objetiva e subjetiva nessa história, serão impressos em nossas vidas significados muitas vezes desconhecidos. Somos originários de uma história anterior a nós e continuaremos a escrevê-la mesmo quando não estivermos mais presentes. É uma espécie de imortalidade, que nada tem a ver com potência ou super poderes, mas com continuidade, com construção. Somos antes de nós e seremos depois de nós. Certa vez li um livro, cujo título é "A imortalidade". O desdobramento da obra versava sobre pessoas que buscavam tornarem-se imortais através de relacionamentos com alguns gênios literários, na esperança que, como essas personalidades realizaram produções atemporais, a pessoa que queria tornar-se simbiótica àquela, tinha como busca a imortalidade através do outro. Essas obras ecoavam em algo relacionado ao original do ser humano e por consequência seus autores e obras mantêm-se atemporais no imaginário coletivo. Só para ajudar a ilustrar esse conceito que, aparentemente, parece meio "viajante", Miguel de Cervantes é um excelente exemplo. Quem não conhece, mesmo se não leu, a obra "Dom Quixote" cuja primeira edição foi publicada em 1605, há mais de 400 anos. Hoje, no ano de 2012, tanto os personagens como seu autor continuam vivos. São atuais, imortais de sentido. Mesmo quando não estivermos mais aqui essa obra continuará a produzir significados viventes, produziu isso antes de nós e o continuará a fazer depois de nós. Sua imortalidade não está relacionada ao retrato de uma época, mas com o retrato de processos humanos, com a busca de construção de uma história de si mesmo, desencadeada pela atração a outras histórias, os romances de cavalaria, delineada no subjetivo. O livro não se constrói dentro da realidade objetiva, apesar de precisar sustentar-se dentro dela. Sancho Pança pode ser visto como essa figura, a realidade objetiva, mas a outra história, a história subjetiva, é também pilar de construção da história. Agora uma pergunta. E a história da qual originamos, que foi escrita muito antes de nós, a vivemos na realidade objetiva? Parte dela sim, porém outra não. A história da qual originamos, sem dúvida, está presente em nós, em nosso subjetivo e traz raízes para a construção de nossa própria história. Vejam bem, eu usei traz raízes, não faz ou planta, traz. (Em outro momento, já propus uma reflexão sobre esse tema, como nossa história não é só nossa ou mesmo como pode ser constituída de muito vazio). Comecei esse texto de hoje com "Era uma vez....", início típico de contos de fadas. Por que comecei assim, queria falar sobre fantasia? Não, sobre os significados e as marcas que esse "era uma vez" deixa em nossa linha histórica. Há um conhecido livro, "A psicanálise dos contos de fadas" que elucida o sentido dessas histórias, hoje tidas como aterrorizadoras e politicamente incorretas. Os contos de fadas são recheadas de figuras más, bruxas, magia, angústia, abandono, ciúme, inveja, castigos. Inclusive as versões originais são muito mais aterrorizadoras do que as versões Disney. Têm finais bem "sádicos" para alguns dos vilões. Por exemplo, em Branca de Neve, na versão original a bruxa tem como fim dançar até a morte calçando sapatos de ferro em brasa. Beira a tortura. No livro "A psicanálise dos contos de fadas", o autor explora os significados dessas histórias no subjetivo da criança. Simplificando essa proposta, e muito mesmo, a criança sente angústias, sente o abandono, sente maldade, mas não tem recursos para lidar com isso. Essas histórias de alguma maneira falam sobre o que sentem e de alguma maneira mostram que isso muda. Não dão fórmulas, não é algo que a criança irá aprender a resolver, mas é algo que sentirá como fazendo parte de si, que é real, mesmo sabendo que é uma história. Sua angústia tem um lugar de pertencimento, ela existe e por isso não precisa ser assustador. A criança não se tornará psicopata acreditando que ao torturar fará justiça, sente que o que está sendo contado não é real na objetividade, mas é real em suas sensações. E o adulto, quanto está procurando entender, conhecer a si mesmo, dá para ignorar a história já "escrita" muito antes à sua vinda? Dá para ignorar que as marcas e os contornos dessa história tem a ver com sua própria história? Que marcas essa história imprimiu em mim e que significados se desenrolaram ou se esconderam? É a partir desse olhar, dessa "visita aos mortos vivos" que muitas coisas poderão ter seus contornos modificados, ter seus sentidos desvelados, que marcas poderão ser redesenhas e feridas poderão ser cuidadas. Olhar a história original não é expiar a culpa, procurar o culpado, é tornar parte de si mesmo algo que sempre foi, mas que agora pode ter uma originalidade própria. E essa originalidade própria em conjunto com o anterior já escrito também imprimirá marcas na vida de outro alguém, levará raízes a esse outro alguém, que também, ao olhar para toda essa construção histórica, também terá a oportunidade de dar um contorno próprio. E assim a imortalidade seguirá seu curso e criará novas imortalidades, sempre e através da continuidade da construção da história. Era uma vez . . . . .

domingo, 1 de julho de 2012

Os cuidados da primeira infância

Hoje no jornal diário, que não tenho lido diariamente, li duas reportagens no caderno saúde que me remeteram ao tema dos cuidados da primeira infância. Ambas as reportagens abordavam casos de pessoas com doenças gravíssimas. O interessante é que uma delas era sobre um idoso, bem doente, e a outra sobre um bebê, que no segundo mês de vida desenvolveu uma doença muito grave. Ambos com riscos eminentes de morte. E, coincidência ou não, os dois em momentos opostos do ciclo da vida. Um próximo ao final desse ciclo e o outro logo no início. Só que no caso do senhor idoso a reportagem foi feita porque a família precisou tomar medidas extremas, além das medidas judiciais, para que o plano de saúde liberasse os procedimentos necessários. No caso do bebê foi um transplante de fígado que transcorreu sem as intercorrências capitalistas. Lógico que me mobilizei pelos dois casos, mas no caso do idoso senti aquela sensação de desamparo, tão doente, e tendo os procedimentos negados, como isso é injusto, afinal se nos sentimos doentes precisamos de cuidados. Por que não podemos recebê-los? Estamos nos sentido mal porque não podemos ser cuidados? Na área da saúde essa é uma equação muito complicada, ainda mais em um sistema de mundo capitalista, ou de superpopulação, ou de abismos tecnológicos e discrepâncias de renda, ou mesmo de profissionais desinteressados. Seja lá quais forem os motivos, mas os cuidados da área da saúde nos remetem a nossa primeira infância. Afinal nascemos totalmente desamparados. Não sobreviveremos se não houver um outro para cuidar de nós. Enquanto bebezinhos, quando sentimos uma estranheza, logo nos pomos a chorar (nosso único mecanismo de comunicação) e alguém vem ver o que está acontecendo. Recebemos o leite, o alimento, nos dão banho, nos trocam, nos agasalham, ou seja eu recebo sempre do outro o que estou precisando. E não dou nada em troca por isso, não sou desenvolvido para isso. Por enquanto eu só posso receber, não possuo desenvolvimento suficiente para dar. Não tenho capacidade, ainda, para cuidar de mim mesmo. Na verdade nem tenho ciência do que preciso. Só sinto que não estou bem e aí vem o outro e faz com que eu me sinta bem. Parece até uma descrição ingênua, infantilizada do que acontece, mas é isso mesmo, é uma "troca" ainda bem primitiva, pouco elaborada. Sinto-me mal e alguém faz com que me sinta melhor. Essa é nossa primeira experiência de "troca" com o mundo. E por isso mesmo, já enquanto adultos, quando não nos sentimos bem, nossa primeira experiência de cuidado será acionada, nos sentimos desamparados e é difícil aceitar que para que cuidem de nós precisamos pagar (dinheiro). Temos a lembrança de um cuidado doado e não de um cuidado trocado. E deveria ser assim sempre, se eu perdi a capacidade de me cuidar porque o outro não pode me ajudar nisso sem que eu tenha que pagar?   Sou psicóloga e a hora de acertar o valor da consulta é sempre angustiante tanto para o psicólogo quanto para o paciente. Ele está lá, sofrendo, com dores aparentemente inexplicáveis, como nos primeiros meses de vida cuja ciência dos motivos pelos quais está se sentindo mal é vaga, e aí um profissional da área dos cuidados psíquicos quer cobrar para cuidar. Um pouco ultrajante. E ainda o papel o psicólogo será muito parecido com o papel daquele outro da minha primeira infância. Irá cuidar no sentido do amparo, no sentido acolhedor, no sentido de cobertor, cuidados que eu recebia sem ter que dar nada em troca. Na medicina clínica existem os exames para comprovar, algo pragmático que mostra o que o faz se sentir mal e prescreve uma conduta com algo do externo, remédios, intervenções cirúrgicas, etc. E na psicologia? O que temos para cuidar são as sensações, as emoções, o sofrimento psíquico, um mal estar geral que nada tem haver com o biológico. Não prescrevemos nada que vem de fora (salvo casos em que há a necessidade de em paralelo de intervenção medicamentosa psiquiátrica), nossas "prescrições" estão sempre atreladas à história de vida do indivíduo, às suas experiências, ao que sente, ao seu desamparo, ao seu sofrimento, etc. O "material" que sempre usamos é de "posse" daquele indivíduo que está lá na nossa frente se desnudando e buscando sentir-se melhor. E temos que cobrar por isso ..... como é difícil. E para o paciente também é muito difícil pagar por isso. Sempre há certa transferência de raiva na hora de pagar, mesmo quando sente que está sendo cuidado. Em sua primeira infância esses cuidados sempre foram naturais e ao tornar-se adulto, porque não pode ser como antes? Quando adultos, ao sentirmos que não estamos capazes de cuidar de nós e precisamos de um outro que nos ajude nisso, sempre nos remetemos a nossa primeira infância, em que os cuidados eram espontâneos e, via de regra, faziam com que me sentisse melhor. Acredito que até por isso, quando doentes, do corpo ou do psiquismo, é muito difícil lidar com essa troca financeira que o modelo de saúde da atualidade nos impõe. Acredito que este possa ser um do motivos que o idoso sofra tanto ao necessitar de cuidados e não recebê-los, afinal à medida que se vai envelhecendo a capacidade de cuidar de si mesmo vai diminuindo e ele se aproxima psiquicamente de sua primeira infância. Talvez até por isso as matérias tenham me chamado tanto a atenção. Ambos os casos falavam da primeira infância, do desamparo e da necessidade do cuidado desvestido de troca, apenas uma necessidade primitiva de receber para continuar vivo, que em outro momento de nossa vida foi tão real e tão vital.