quarta-feira, 23 de novembro de 2011

Desorganização e excesso

Já escrevi várias vezes sobre arrumações: arrumação 1 e arrumações 2. Só que outro dia me "toquei", nunca falei sobre a desorganização. E falar sobre desorganização está totalmente relacionado à fase que estou vivendo. Faz mais de um mês que postei minha última reflexão e de lá para cá vários assuntos têm passado pela minha mente porém nenhum deles eu desenvolvo. Comecei até achar que eu estava esvaziada de sentido, esvaziada do cotidiano, afinal minha proposta está relacionada ao dia a dia que vivemos, que enfrentamos . . . . então, se pouco sentido estava vindo desse dia a dia era bem possível que eu estivesse ou pouco reflexiva ou anestesiada. Só que reflexão é minha principal ferramenta de trabalho, é como me desenvolvi, então essa hipótese foi descartada. Anestesiada, também difícil, lido com saúde mental, com desorganização psíquica, com sofrimento, se estivesse anestesiada não estaria conseguindo ouvir o outro. O ponto de interrogação se manteve até que, acredito ter tido uma luz sobre o principal "responsável" pela escassez de textos. O excesso . . . . . a desorganização . . . um certo caos interno e psíquico. Muitas coisas tem acontecido, tenho ocupado demais o espaço criativo para organizar questões internas, pessoais e por isso tem me sobrado pouco espaço interno ao olhar o dia a dia, ao olhar para fora e fazer conexão com o de dentro. E essa desorganização, esse excesso de estímulos têm me mobilizado a procurar formas de organizar, de produzir novos sentidos. O excesso provoca distorções, provoca uma aparente perda de sentido porque muitas são as possibilidades, muitas são as ideias para a organizar, finalizar e quando o excesso está "atuando" a organização parece muito difícil. É por isso que vários temas têm me surgido à mente e não consigo desenvolvê-los, do mesmo jeito que surgem, somem e logo na sequência surge outro e . . . . aparentemente só mais uma ideia solta. Há muito tempo, há mais de ano escrevi uma reflexão sobre um conceito (depressividade) que o psicanalista Fedida introduziu. Vou usar parte dessa reflexão para ilustrar algo que tenho percebido como necessário para organizar-se no excesso: a necessidade de permeabilidade. O caos é caracterizado pelo excesso de "coisas" e para organizá-las é preciso vê-las em separado e não absorver tudo de uma única vez. Para que o indivíduo possa continuar "abrindo espaços psíquicos", produção de sentidos de novas experiências é necessária uma certa seletividade nas experiências subjetivas e intersubjetivas vivenciadas. É como se esse mecanismo fosse uma membrana semipermeável. Um conceito aparentemente simples, mas em sua essência resguarda uma complexidade a ser respeitada. Para auxiliar na ilustração usarei nossa pele como exemplo. Ela tem um papel fundamental e muito importante na manutenção de nosso equilíbrio orgânico sendo responsável por excretar o suor e sais, ou seja, através de seus poros substâncias saem. Também é responsável por impedir a entrada de substâncias que alterariam o equilíbrio orgânico. Ao mesmo tempo que é barreira de entrada para a água não o é para uma pomada, caso tenhamos que tratar alguma lesão. Nesse caso a pele terá a capacidade de absorção. Então, a pele deixa tanto entrar como sair, mas não é qualquer coisa que entra ou sai, há uma seletividade. A pele é sempre a mesma e o que a faz deixar entrar ou sair está relacionado à característica da substância que está interagindo com ela. E lidar com os excessos é similar a esse processo seletivo. Saber o que está dentro, o que está fora e as possibilidade de interação e intercâmbio é que produzirá um novo sentido, antes não experenciado por aquele indivíduo. Esse novo sentido será um sentido organizador. Então o excesso diminui, o caos diminui e a possibilidade de organização já se mostra. A desorganização faz isso por nós, nos dá possibilidade de criarmos novos sentidos, de revermos velhas maneiras e criarmos novas. A desorganização pode ser criativa mas exige muita, mas muita paciência. Termino o texto com uma certa sensação de pouca organização e de talvez não ter conseguido expressar-me adequadamente. Ao mesmo tempo uma sensação de originalidade (sentido de origem, tudo que veio foi a partir da desorganização) porque esse excesso têm estado muito presente no meu cotidiano e posso tê-lo espelhado no texto, algo consonante em relação ao meu momento. Quem sabe já não é um sentido de organização?

domingo, 6 de novembro de 2011

Curtas: Politicamente correto, solo fértil para . . . . . .


Trabalho em uma instituição psiquiátrica e tenho ficado cada dia mais impressionada com a quantidade de pessoas que são internadas com distúrbios de desorganização psíquica grave cuja família parece vir de um comercial de margarina. Ouço o relato da família sobre o desenvolvimento do paciente e fico estarrecida, perdida porque tudo parece tão no lugar. Fico me perguntando: o que aconteceu para aquele sujeito ter se desorganizado tanto? Os relatos dos cuidados são tão redondos. . . . . . os discursos de afetividade são tão amorosos . . . . que fico me perguntando, onde está a "loucura" nessa família. É fato que, para um sujeito desenvolver um transtorno mental grave a ponto de precisar ser internado, há uma disfunção familiar, é sistêmico. A desorganização psíquica é intrínseca nas relações parentais, não há como dizer que a criança não é afetada pela desorganização do adulto. Mas, no passado, essa desorganização era escancarada, não havia a casca do politicamente correto para encobrir as disfunções familiares. Hoje, os adultos colam em seus corpos maneiras de lidar com o outro e a naturalidade fica completamente esquecida, fica obsoleta. A naturalidade não é ferramenta para esconder-se. Na verdade a naturalidade hoje é banida dos círculos sociais, afinal pode ser uma denunciadora do que não está bem. Só que se vemos o que não está bem existe a possibilidade do cuidar . . . . . . mas também  alguém pode apontar. Você não sabia? Você não viu? Você não leu? A sociedade de hoje prega sucesso, perfeição, maneiras de usar todo o seu potencial, é de uma prepotência e arrogância intensa. Como uma mãe vai poder admitir que acredita ter deixado de ser suficientemente boa em alguma coisa. Simplesmente, se assumir isso, será apedrejada em praça pública. Terá cometido o maior dos pecados, terá admitido que errou, que surtou, que cansou, mas também existe a possibilidade dela ter, junto com tudo isso, cuidado, acarinhado, amado e acompanhado. Atendo as famílias e as vejo dissociadas. Tudo foi tão bem. Quando criança o paciente era ótimo, na escola ótimo, os pais sempre ótimos, sempre acompanhando . . . . de repente tudo mudou. E a família fica me dizendo isso de uma maneira tão superficial que fico procurando onde está o encoberto, o que não estão me contando, como descobrir isso? Antes do politicamente correto, dos livros com dicas de educação perfeita, de faça isso que acontecerá aquilo, havia espaço para a ira, o ressentimento, o ciúme, a loucura, a desorganização, mas também para a união, para o amor  e o carinho. Hoje tudo tem que ser plástico, perfeito. Ninguém pode ser pessoa, sujeito desejante, frustrado, amoroso e raivoso. Tem que ser perfeito e politicamente correto. Se o politicamente correto é trocar a fralda do meu filho a cada duas horas é o que vou fazer. Não vou esperá-lo chorar, ou não vou no cansaço do cuidar tirar um cochilinho fora de hora e acordar com meu pequeno chorando precisando de ajuda. Não . . . . .  para ser boa mãe, politicamente correta eu tenho que ficar olhando no relógio a hora de dar o suquinho, a hora da mamadeira, a hora do cochilo e não ter espaço para colocar o que de fato estou sentindo junto com aquele serzinho, que pode ser medo, aflição, ignorância, amor, cansaço, um monte de coisa junta. Não, vou abstrair tudo o que sinto e no lugar colocar o que deve ser feito para que meu filho tenha a melhor assistência possível. E aí ele cresce no vazio, e a mãe educa no vazio e aí mais tarde interna o filho em uma instituição psiquiátrica e conta uma história de vida do filho que não preenche uma folha, tudo meio vazio. Mas para preencher esse vazio temos o politicamente correto, ajuda na manutenção dos códigos sociais e diz que humaniza mais as relações, será?