domingo, 25 de dezembro de 2011

Segurança 100% . . . tem como?

No dia natal, as crianças estão brincando com os presentes que ganharam na véspera . Minhas filhotas também ganharam seus presentes e, dentre eles, uns "meio perigosos": uma pediu um patinete e a outra um par de patins. Como hoje o politicamente correto é garantir a segurança total dos filhos, cada uma ganhou junto ao seu tão desejado presente um kit "segurança" . . . . capacete, joelheira e cotoveleira. Inclusive, Feliz, quando pediu seu patinete disse que esse kit era importantíssimo, pois eu não iria querer que ela de maneira alguma se machucasse (palavras dela). Apesar de eu achar um exagero não iríamos querer o rótulo de displicentes, que não se preocupam com a segurança dos filhos, então seguimos a "tendência" mundial. Estávamos na pracinha vendo-as equilibrarem-se em suas novidades do natal quando avisto uma outra criança, de aproximadamente uns 4 anos, vindo com sua provável bicicleta nova com rodinhas e, além disso, um acessório de segurança . . . . um capacete. Fiquei me perguntando: será que é preciso toda essa parafernália? Será que o menino, já com as rodinhas, ainda precisava do capacete? Ao mesmo tempo olhava para minhas filhotas e os tombos que levaram foram todos de bumbum. Ou seja, o kit não "protegeu", não haviam "bumbunzeiras". Claro que acredito em vários equipamentos de segurança, o cinto de segurança em carros, as cadeirinhas para crianças, afinal o carro atinge velocidades elevadas e os impactos podem não só machucar mas também levar a óbito. Mas para brincar, para viver o dia a dia, será que é necessário tudo isso, será que dá para garantir que nada sairá errado, que não haverão arranhões e machucados? O que me preocupa não é só o exagero, mas como esse cerco de segurança ilusória pode desenvolver adultos medrosos, que tem medo de arriscar, que tem medo de viver se as coisas não estiverem 100% dentro do esperado, dentro do "adequado". Para mim por trás de toda essa parafernália estamos dando outra mensagem, que emocionalmente pode ser muito mais danosa do que arranhões ou braços quebrados. Será que com esse exagero de segurança não estamos transformando nossas crianças em pessoinhas infantilizadas emocionalmente? Pessoas que vão acreditar que algo do externo estará sempre pronto a lhes proteger e por isso não amadurecem, não conseguem desenvolver um acreditar em si mesmo para arriscar e, caso se machuquem saibam cuidar de si mesmas, levantar, sacudir a poeira e continuar. Acredito que a sociedade de hoje está infantilizando muito o ser humano, incentivando-o a olhar e acreditar no que vem de fora e consequentemente ignorar o de dentro. Acreditar em si mesmo é coisa do passado, hoje temos que acreditar nos equipamentos. Para ilustrar: dá para imaginar as ginastas olímpicas treinando de capacete, joelheira e tornozeleira?
Sempre que eu assisto uma apresentação dessas me dá muito frio na barriga quando vão dar aqueles mortais, aquelas piruetas, saltar no cavalo . . . . fico imaginando não só o quanto treinaram mas o quanto de coragem e segurança em si mesmas desenvolveram para se  "aventurarem" em tais exercícios. E os artistas do circo de soleil . . . . será que nos proporcionariam espetáculos tão lindos e interessantes se ficassem aprisionados pela segurança e seus kits? Quantos jovens hoje, ao se formarem, desejam trabalhar na empresa X ou Z porque é "segura", está há anos no mercado de trabalho e é líder a outros tantos. Será que esses jovens entram nessa empresa porque se sentem profissionalmente maduros para contribuir ou porque querem um porto seguro já que sua segurança em si mesmo é deficiente? Na vida temos poucas certezas (se é que temos alguma), temos muito mais dúvidas e incertezas, só que o imaginário social está tentando a fórceps derrubar uma das poucas certezas que o ser humano pode ter . . . . si mesmo.

quarta-feira, 23 de novembro de 2011

Desorganização e excesso

Já escrevi várias vezes sobre arrumações: arrumação 1 e arrumações 2. Só que outro dia me "toquei", nunca falei sobre a desorganização. E falar sobre desorganização está totalmente relacionado à fase que estou vivendo. Faz mais de um mês que postei minha última reflexão e de lá para cá vários assuntos têm passado pela minha mente porém nenhum deles eu desenvolvo. Comecei até achar que eu estava esvaziada de sentido, esvaziada do cotidiano, afinal minha proposta está relacionada ao dia a dia que vivemos, que enfrentamos . . . . então, se pouco sentido estava vindo desse dia a dia era bem possível que eu estivesse ou pouco reflexiva ou anestesiada. Só que reflexão é minha principal ferramenta de trabalho, é como me desenvolvi, então essa hipótese foi descartada. Anestesiada, também difícil, lido com saúde mental, com desorganização psíquica, com sofrimento, se estivesse anestesiada não estaria conseguindo ouvir o outro. O ponto de interrogação se manteve até que, acredito ter tido uma luz sobre o principal "responsável" pela escassez de textos. O excesso . . . . . a desorganização . . . um certo caos interno e psíquico. Muitas coisas tem acontecido, tenho ocupado demais o espaço criativo para organizar questões internas, pessoais e por isso tem me sobrado pouco espaço interno ao olhar o dia a dia, ao olhar para fora e fazer conexão com o de dentro. E essa desorganização, esse excesso de estímulos têm me mobilizado a procurar formas de organizar, de produzir novos sentidos. O excesso provoca distorções, provoca uma aparente perda de sentido porque muitas são as possibilidades, muitas são as ideias para a organizar, finalizar e quando o excesso está "atuando" a organização parece muito difícil. É por isso que vários temas têm me surgido à mente e não consigo desenvolvê-los, do mesmo jeito que surgem, somem e logo na sequência surge outro e . . . . aparentemente só mais uma ideia solta. Há muito tempo, há mais de ano escrevi uma reflexão sobre um conceito (depressividade) que o psicanalista Fedida introduziu. Vou usar parte dessa reflexão para ilustrar algo que tenho percebido como necessário para organizar-se no excesso: a necessidade de permeabilidade. O caos é caracterizado pelo excesso de "coisas" e para organizá-las é preciso vê-las em separado e não absorver tudo de uma única vez. Para que o indivíduo possa continuar "abrindo espaços psíquicos", produção de sentidos de novas experiências é necessária uma certa seletividade nas experiências subjetivas e intersubjetivas vivenciadas. É como se esse mecanismo fosse uma membrana semipermeável. Um conceito aparentemente simples, mas em sua essência resguarda uma complexidade a ser respeitada. Para auxiliar na ilustração usarei nossa pele como exemplo. Ela tem um papel fundamental e muito importante na manutenção de nosso equilíbrio orgânico sendo responsável por excretar o suor e sais, ou seja, através de seus poros substâncias saem. Também é responsável por impedir a entrada de substâncias que alterariam o equilíbrio orgânico. Ao mesmo tempo que é barreira de entrada para a água não o é para uma pomada, caso tenhamos que tratar alguma lesão. Nesse caso a pele terá a capacidade de absorção. Então, a pele deixa tanto entrar como sair, mas não é qualquer coisa que entra ou sai, há uma seletividade. A pele é sempre a mesma e o que a faz deixar entrar ou sair está relacionado à característica da substância que está interagindo com ela. E lidar com os excessos é similar a esse processo seletivo. Saber o que está dentro, o que está fora e as possibilidade de interação e intercâmbio é que produzirá um novo sentido, antes não experenciado por aquele indivíduo. Esse novo sentido será um sentido organizador. Então o excesso diminui, o caos diminui e a possibilidade de organização já se mostra. A desorganização faz isso por nós, nos dá possibilidade de criarmos novos sentidos, de revermos velhas maneiras e criarmos novas. A desorganização pode ser criativa mas exige muita, mas muita paciência. Termino o texto com uma certa sensação de pouca organização e de talvez não ter conseguido expressar-me adequadamente. Ao mesmo tempo uma sensação de originalidade (sentido de origem, tudo que veio foi a partir da desorganização) porque esse excesso têm estado muito presente no meu cotidiano e posso tê-lo espelhado no texto, algo consonante em relação ao meu momento. Quem sabe já não é um sentido de organização?

domingo, 6 de novembro de 2011

Curtas: Politicamente correto, solo fértil para . . . . . .


Trabalho em uma instituição psiquiátrica e tenho ficado cada dia mais impressionada com a quantidade de pessoas que são internadas com distúrbios de desorganização psíquica grave cuja família parece vir de um comercial de margarina. Ouço o relato da família sobre o desenvolvimento do paciente e fico estarrecida, perdida porque tudo parece tão no lugar. Fico me perguntando: o que aconteceu para aquele sujeito ter se desorganizado tanto? Os relatos dos cuidados são tão redondos. . . . . . os discursos de afetividade são tão amorosos . . . . que fico me perguntando, onde está a "loucura" nessa família. É fato que, para um sujeito desenvolver um transtorno mental grave a ponto de precisar ser internado, há uma disfunção familiar, é sistêmico. A desorganização psíquica é intrínseca nas relações parentais, não há como dizer que a criança não é afetada pela desorganização do adulto. Mas, no passado, essa desorganização era escancarada, não havia a casca do politicamente correto para encobrir as disfunções familiares. Hoje, os adultos colam em seus corpos maneiras de lidar com o outro e a naturalidade fica completamente esquecida, fica obsoleta. A naturalidade não é ferramenta para esconder-se. Na verdade a naturalidade hoje é banida dos círculos sociais, afinal pode ser uma denunciadora do que não está bem. Só que se vemos o que não está bem existe a possibilidade do cuidar . . . . . . mas também  alguém pode apontar. Você não sabia? Você não viu? Você não leu? A sociedade de hoje prega sucesso, perfeição, maneiras de usar todo o seu potencial, é de uma prepotência e arrogância intensa. Como uma mãe vai poder admitir que acredita ter deixado de ser suficientemente boa em alguma coisa. Simplesmente, se assumir isso, será apedrejada em praça pública. Terá cometido o maior dos pecados, terá admitido que errou, que surtou, que cansou, mas também existe a possibilidade dela ter, junto com tudo isso, cuidado, acarinhado, amado e acompanhado. Atendo as famílias e as vejo dissociadas. Tudo foi tão bem. Quando criança o paciente era ótimo, na escola ótimo, os pais sempre ótimos, sempre acompanhando . . . . de repente tudo mudou. E a família fica me dizendo isso de uma maneira tão superficial que fico procurando onde está o encoberto, o que não estão me contando, como descobrir isso? Antes do politicamente correto, dos livros com dicas de educação perfeita, de faça isso que acontecerá aquilo, havia espaço para a ira, o ressentimento, o ciúme, a loucura, a desorganização, mas também para a união, para o amor  e o carinho. Hoje tudo tem que ser plástico, perfeito. Ninguém pode ser pessoa, sujeito desejante, frustrado, amoroso e raivoso. Tem que ser perfeito e politicamente correto. Se o politicamente correto é trocar a fralda do meu filho a cada duas horas é o que vou fazer. Não vou esperá-lo chorar, ou não vou no cansaço do cuidar tirar um cochilinho fora de hora e acordar com meu pequeno chorando precisando de ajuda. Não . . . . .  para ser boa mãe, politicamente correta eu tenho que ficar olhando no relógio a hora de dar o suquinho, a hora da mamadeira, a hora do cochilo e não ter espaço para colocar o que de fato estou sentindo junto com aquele serzinho, que pode ser medo, aflição, ignorância, amor, cansaço, um monte de coisa junta. Não, vou abstrair tudo o que sinto e no lugar colocar o que deve ser feito para que meu filho tenha a melhor assistência possível. E aí ele cresce no vazio, e a mãe educa no vazio e aí mais tarde interna o filho em uma instituição psiquiátrica e conta uma história de vida do filho que não preenche uma folha, tudo meio vazio. Mas para preencher esse vazio temos o politicamente correto, ajuda na manutenção dos códigos sociais e diz que humaniza mais as relações, será?

terça-feira, 11 de outubro de 2011

Curtas: Touradas e sadismo


Insônia . . . .  fui ler notícias na internet. Havia uma notícia sobre um toureiro ferido pelo touro e a reportagem advertia que a imagem era forte. Mesmo assim fui olhar, não sei porque, queria ver como o toureiro tinha sido ferido. Achei a imagem chocante, mais pelo sangue que escorria do lombo do touro do que pelo toureiro. Foi estranho, ao olhar a foto não pude deixar de sentir que o touro nada mais fez do que reagir com raiva e atacou quem o machucava. Aparentemente o touro deveria estar sentindo muita dor. Não entendo nada de touradas e também não conheço muito da cultura espanhola, mas existe algo que é universal, o sadismo. Na tourada o objetivo nada mais é do que inflingir dor, mostrar superioridade e poder. É uma tortura lenta. É um sadismo atuante e perverso, tanto do toureiro como de quem assiste. E em toda a história de nossa "civilização" tem exemplos e mais exemplos do homem sádico, às vezes uma nação inteira sádica, se sobrepondo ao outro em função de um narcisismo e um egocentrismo. A vida do outro existe para que sinta dor e com isso alimentar o prazer no sádico. Não consigo entender. Uma vez li um livro escrito por um antropólogo que defendeu a tese que essa agressividade, que esse sadismo também é presente nos chimpanzés e por isso temos esse "algo" filogenético. O livro "O macho demoníaco" mostra como os chipanzés também se juntam e machucam outros de suas espécie por prazer ou para demonstrar poder. Os chimpanzés gostam de poder, o disputam e machucam o outros para enviar "recados". Em contrapartida, nesse mesmo livro, aprendi sobre os bonobos. Também primatas superiores e muito pacíficos, com a empatia presente em suas ações. Segundo o livro o bando tem a figura da fêmea-alpha e não o macho-alpha com na "sociedade" dos chimpanzés. Além disso todos os conflitos que acontecem no grupo são resolvidos através do sexo. Deu problema . . . .  sexo, inclusive entre pares do mesmo gênero. Parecem o oposto dos chimpanzés. Uma das colocações do livro é que como devemos ter herança genética tanto de um como de outro temos as duas tendências: agressividade e pacificação. Agora, se um jeito de lidar com o sadismo e os conflitos é com o sexo, de maneira muito simplista e sem ofender o pensador, Freud estava "coberto" de razão. Nossas pulsões sexuais são "comandantes" em nossas relações. Então, simplificando muito mais, será que ao invés de corrermos tanto atrás em aumentar nosso patrimônio, ter uma casa mais confortável, trocar de carro, não deveríamos procurar um parceiro sexual bem legal e, quem sabe, a paz mundial se instaurar. Desde que o mundo é mundo sexo é um tabu, e desde que o mundo é mundo o homem dizima povos, rouba culturas, se sobrepõe sobre o outro por prazer, ganância, por fim, um narcisista sádico. A tourada é um exemplo de um sadismo coletivo como outros tantos que nossa história está recheada. Será que isso um dia muda ou o ser humano vai continuar escrevendo sua história com a tinta do sadismo, do poder e da perversão?

quarta-feira, 5 de outubro de 2011

Curtas: Sinto uma "coisa"

Em diversas situações no dia a dia nos ouvimos dizendo: "sinto uma coisa", uma frase assim, bem pouco específica. Quando alguém pergunta: mas que "coisa" se responde: sei lá, um treco, um troço, aqui no peito, na barriga, uma sensação, uma "coisa". O dia acaba e na maioria das vezes não conseguimos denominar o que sentíamos, "apenas" uma "coisa", uma sensação muito real, mas uma "coisa". As palavras para descrevê-las não são encontradas, são sensações, não parece caber palavras. Essa "coisa" me faz lembrar de um livro, cujo título é: "A coisa" (autor: Alberto Moravia). Cheguei até ele da seguinte forma: era uma época em que eu procurava ler autores não tão divulgados, menos mencionados nas mídias, de preferência europeus (certo preconceito, confesso) e cujo enredo da história parecesse intimista, nos recônditos do ser humano. Procurava primeiro livros de contos para depois, se eu gostasse, comprar algum romance do autor. Também gosto muito de contos, sinto uma certa densidade, não sei porque ..... é uma sensação. Fazendo, então, a garimpagem na livraria vi esse livro e resolvi comprar. Me surpreendi com o conteúdo. Eram contos com temáticas bem originais, intimistas e profundas. Levavam o leitor a universos pouco mencionados, bizarros, mas tão reais no imaginário coletivo que me envolvi. Uma "coisa" meio underground, meio que do submundo do inconsciente, meio erotizado. O conto que deu origem ao nome do livro não foi o que mais gostei, o meu eleito foi um cujo nome acho chamar-se "O diabo".  Tem aproximadamente uns 15 anos que li o livro, hoje  não está mais comigo, então vou falar por lembrança, acreditando que pouca coisa ficará distorcida (se algo estiver muito distorcido com certeza terá um motivo que depois vejo se descubro, algum ato falho, talvez muito falho). Seu conteúdo, seu enredo ainda é muito vivo para mim. Vou advertir os leitores que conterei sobre o que versa o conto e inclusive seu final. O conto começa com um senhor sentado em um parque vendo as crianças brincarem. Esse senhor de meia idade era um cientista brilhante, que tinha uma certa perversão, da qual possuía consciência, mas não atuava, sentia. Seguia seus dias entre seu brilhantismo e sua perversão. Além desse cientista o outro personagem era o diabo. O objetivo  do diabo era conseguir almas, para colecionar em seu inferno. Para alcançar seu intento barganhava com as pessoas, prometendo-lhes aquilo que mais desejavam em troca de sua alma. Só que esse cientista não era muito simples de ser seduzido. O diabo se transforma e busca seduzi-lo, através da perversão inconfessável do cientista, que somente o diabo e o cientista sabiam. É uma sedução crescente, sutil, nada grosseira. À medida que as páginas vão virando o diabo investe cada vez mais nessa sedução e o cientista vai afundando-se cada vez mais em seu conflito. Há uma genuína tensão crescente à medida que a história vai se desenrolando. O cientista vive cada vez mais em conflito e o diabo se envolve cada vez mais com a vida e obra do cientista. Já próximo do final o diabo descobre que o cientista estava provando (não lembro ao certo se é o fim do mundo ou a existência de Deus. No mínimo uma dúvida estranha, mas ambas as hipóteses ilustram a tensão final) e fica extasiado com tal brilhantismo. Percebe-se enamorado, apaixonado pelo cientista, que acaba assinando o contrato. O diabo querendo viver intensamente seu desejo de amor pelo cientista busca beijá-lo e nesse momento se desfaz em fumaça. Absurdamente original. O cientista perdeu sua alma e o diabo não pode vivê-la, já que "brotou" uma alma própria, e não de outra pessoa. Muito "louco", interessantíssimo. Até hoje não sei dizer que "coisa" gostei tanto no conto, além da originalidade. São sensações, sensações e sensações. Não consigo interpretar, fico perplexa, atônita em ver como é o "fim do mundo ou a existência de Deus". Existem "coisas" que não conseguimos explicar, só sentimos, mas que insistimos em tentar explicar. Será que esses "buracos" de explicação precisam ser preenchidos com palavras? Só sentir ...... que mal há? E como explicar? Precisa?

domingo, 25 de setembro de 2011

Arrumações 2



Tudo começou de uma maneira meio desarrumada. Domingo, bem cedo, dia livre, filhas nos avós pensei em fazer várias coisas pendentes. Ler um texto do grupo de estudos, fazer uma postagem, ver um filme. Por fim resolvi começar pelo texto do grupo de estudos que cuida da relação do psicanalista e suas teorias. Abre parênteses: durante a semana tem um colega de trabalho, que chamarei de Rodrigues, me pediu alguma literatura sobre mecanismos de defesa e emprestei dois livros meus. Um com linguagem simples, que além dos mecanismos de defesa versa sobre a psicanálise abordando os principais aspectos dessa teoria de maneira acessível e outro um pouco mais denso. Dias depois o Rodrigues disse estar gostando muito da leitura e achando a psicanálise interessante. A partir dessa fala dele, lembrei de outro texto de Freud (As cinco lições da psicanálise) que na época da faculdade li, achei extremamente interessante, e a partir daí, mesmo sem saber na época, me apaixonei pela psicanálise. Transferencialmente pensei em emprestar ao Rodrigues também esse texto. Fecha parênteses.  Resolvi começar o dia pelo texto do grupo de estudos sobre psicanálise. Logo no início li algo, sobre a psicanálise, que achei tão lindo, imediatamente começou o desencadeamento de sensações. Me remeti ao meu primeiro despertar, ao texto de Freud, ao interesse do meu colega de trabalho na psicanálise, então, larguei o que fazia resolvi procurar o texto para entregar ao Rodrigues. Não sei porque mas era algo urgente. Eu tinha certeza que esse texto estava junto ao meu material da faculdade, até hoje o guardava na íntegra: cadernos, trabalhos, textos e produções monográficas. Comecei a remexer, não encontrava o texto, e ao mesmo tempo me deparei com um monte de coisas que não faziam mais sentido em guardar. Resolvi que iria jogar um monte de coisas fora. Comecei uma certa desorganização, tão sem linearidade, pareciam movimentos meio aleatórios. Ao mesmo tempo me intrigava não ter dado de cara logo com o texto do Freud porque recentemente o usei para preparar uma aula. Tentando fazer a triagem do que ficar e do que jogar, lembrei: o texto das cinco lições estava em outro lugar. Abandonei a triagem, tinha um monte de coisas espalhadas pelo chão, algo meio bagunçado e fui procurar as cinco lições em outro lugar. Achei logo e imediatamente que senti satisfação também percebi que aquele lugar também estava meio bagunçado, precisava de organização. Resolvi organizar lá primeiro não havia tantas coisas a serem jogadas fora, só melhor dispostas. Depois de fazer isso voltei ao lugar onde tudo começou. Então, mais organizadamente consegui selecionar o que jogaria fora e o que não. Na época da faculdade, tudo o que o que se relacionava a ela era tão significativo que sentia necessidade de acumular, deixar tudo com a mesma  importância.  Hoje, muito diferente, meu caminho já está tão mais sólido, mais lúcido, que não preciso mais de tanto volume. Mas . . .  minha agenda do ano de 2007 não consegui me desfazer. Foi um ano importante, um marco para uma série de mudanças que até hoje estão acontecendo. O significado desse ano ainda é muito vivo, muito presente. Durante algum tempo sinto que essa agenda vai permanecer onde a coloquei, pelo menos ela mudou de lugar, já é alguma coisa, já uma ressignificação. Fiquei horas me reorganizando, inclusive elegi um canto no qual coloquei várias quinquilharias que não sei o que fazer. Acho que terá a hora certa para arrumá-lo, mas por enquanto esse lugar vai representar o reservatório daquilo que não sei o que fazer, mas que em algum momento receberá um novo destino. É assim com tudo em nossa vida. Vez por outra, precisamos reforçar nosso lugar ou encontrar outro destino, outro significado. Hoje foi um dia de arrumações, de trocar de sapato. Joguei aqueles que não me servem mais, que um dia foram bonitos, mas meu pé cresceu, mudou, está diferente e eles não combinam mais. Ainda sobraram alguns, com quais não sei bem o que fazer. Não os quero mais usar, não fazem mais sentido, mas não consigo me desfazer. Por isso os guardei em um lugar lembrável, onde eu possa vê-los de vez em quando, que algo deve ser feito, não estão bloqueando minha passagem, é um lugar mais de lado . . . . . . só que não é esquecido.  

domingo, 18 de setembro de 2011

Curtas: Poroca - um encontro

Há uns 10 anos atrás, ainda na faculdade, estava aprendendo sobre psicodrama e a professora leu um trecho em que Jacoby Moreno, o pai do psicodrama, escreveu sobre o encontro de duas pessoas.


A partir dessa leitura eu escrevi um texto, e não sei porque resolvi colocá-lo hoje no meu cantinho de reflexões. Fala sobre algo que acontece o tempo todo em nossas vidas, sobre o encontro com o outro. Aqui vai um pensamento de 10 anos atrás: "Quando leio ou escuto a palavra encontro, nunca  deixo de lembrar o dia em que aprendi sobre a pororoca, que é o encontro das águas do Rio Amazonas com o mar. Ao ler a poesia, imediamente a palavra pororoca veio-me à mente e enxerguei o encontro proposto por Moreno como um encontro da pororoca, só que ao invés de águas, um turbilhão de emoções. Quando encontra-se com o outro, ou seja, que ocorre uma interrelação e papéis são vividos, emoções são sentidas e trocadas. Quando há a proposta de vivenciar a experiência do outro através da representação da troca dos olhos, há um benefício mútuo. Passo a ver-me sob outro ângulo e a pessoa também passa a ver-se sob outra ótica. Processo muito construtivo para uma auto-avaliação e conscientização de suas atitudes e maneira sde lidar com os papéis e as relações pessoais. Maneira de entrar em contato com os próprios sentimentos e conflitos. Volto novamente à pororoca. Ela é um fenômeno da natureza que não é presente, nem passado, nem futuro. A vivência dos papéis, o olhar a si mesmo e ao outro é uma experiência atemporal e que flui trazendo uma série de renovações internas. Assim como a pororoca está sempre ocorrendo com águas renovadas e trocadas. Ninguém consegue aprisionar ou controlar esse fenômeno. O encontro deve ser espontâneo e criativo assim como a natureza o é." Hoje após 10 anos eu escreveria diferente, mas não mudaria muito. A importância e intensidade do encontro com o outro é única com aquele outro. Saber encontrar-se, consigo e com o outro, não tem preço.

Depressão

É muito sofrimento e um sofrimento solitário e de difícil  compreensão, tanto para o próprio que sofre como para os que estão a sua volta. Tive uma paciente, com um quadro depressivo moderado, que me descrevia pensamentos e sensações muito angustiantes, mas que não compartilhava com ninguém já que os achava tão estranhos que tinha receio de ouvir-se ou mesmo de ver o semblante confuso para quem contasse. É um isolamento característico no deprimido, ele sente e pensa "coisas" que parecem impossíveis de serem ditas e por isso sofre calado e perdido. Minha paciente em determinado momento de sua vida tomou uma decisão que viria a mudar muitos aspectos de sua vida. Na época ela sabia que era uma decisão muito importante, planejou, traçou metas e acreditou que tudo ocorreria próximo ao que imaginou. Mas não foi bem assim, muito diferente e sua vida foi modificada de uma maneira que não estava preparada, com perdas significativas. Foi sentindo-se triste, desamparada e sufocada por si mesma. Tinha insônias frequentes e nessas horas insones uma angústia de aniquilação tomava conta dela. Relatava-me que se sentia como no filme "Efeito borboleta", o qual nunca tinha assistido. Via as chamadas do filme e entendia que era  sobre uma pessoa que voltou ao seu passado para mudar algo, para ficar melhor, mas que ao fazer isso os efeitos foram devastadores. O personagem do filme insistia em tentar consertar isso, voltando novamente ao passado para modificar esse algo, mas as consequências  continuavam devastadoras, sempre piorando o que já estava ruim. Era como ela se sentia. Ao tomar aquela decisão que abrangia aspectos muito importante da sua vida, começou a acreditar que tomou uma decisão equivocada (como o personagem que voltou ao passado) e a partir disso qualquer ação ou atitude que tomasse só iria se desdobrar em algo pior do que estava vivendo. Essa sensação era tão autêntica, não era um pessimismo, era uma certeza. Vivia aterrorizada por si mesma, com medo, paralisou e sofria muito por isso. Queria sentir-se melhor, fazer alguma coisa, mas tinha medo de fazer porque qualquer coisa que fizesse tinha certeza que redundaria em algo pior. Para ela isso era uma certeza. Hoje ela está bem melhor, conseguiu tomar várias decisões que mudaram, mais uma vez, o rumo de sua vida. Ela lembra, de vez em quando, do efeito borboleta, essa sensação não a paralisa mais, mas era tão real que, até hoje, quando fala sobre isso, chora. Sentiu-se perto da aniquilação e foi muito assustador. A depressão é assim, a pessoa sofre muito, no começo, e quando o quadro se intensifica, piora, a pessoa  pára de sofrer, seu "espírito" se exaure e pára de viver. É a doença do vivente humano.

domingo, 11 de setembro de 2011

Curtas: Filme francês



Há mais de vinte anos tive um namorado que descrevia filme francês da seguinte forma: primeiro close na mulher dentro do quarto sentada na beirada da cama, olhando para o nada.... muda a câmera que através da janela desse quarto filma crianças brincando com uma bola vermelha, close na bola . . . . depois a câmera muda para a rua e filma um carro estacionado, e por aí ele ia. Na época eu achava engraçado, mas passados tantos anos comecei a entender mais esse sentido das várias cenas, introspectivas, aparentemente não conectadas e com vários significados. Confesso que ultimamente tenho refletido muito sobre esse elã francês e suas tradições. Recentemente vi o filme do Woddy Allen - Meia-Noite em Paris em que o personagem principal vive situações da Paris dos anos 30. Muito glamour, muitos pintores, poetas, escritores e sempre uma aura que a produção que modifica, a arte que transforma a sociedade sempre veio de lá. Por que lá tornou-se a referência onde a arte, a liberdade poderia brotar e crescer? O que havia de tão especial na formação de sua sociedade e suas ideais? Lá quase toda forma de ser na arte, no pensar, no esculpir era acolhida. Todos sentiam terem lugar, ou pelo menos possibilidade de ser o que imaginavam que poderiam ser. E ser com sentido, ser para si. O ser de lá era para dentro e ao mesmo tempo para fora, mas com uma linguagem universal imaginária. As artes, literatura, poesia falam com as pessoas não só através do intelecto, mas através do ser. Talvez até por isso os filmes franceses tivessem tão poucas falas ou mesmo falas entrecortadas de cenas e emoções que aparentemente não tem uma linearidade cognitiva. Contraponto total com a cultura american, NY. Em NY também tudo pode, tudo é acolhido, só que no estereótipo, no para fora. Os filmes americanos são recheados de falas, ações e conclusões que se esvaziam assim que o filme acaba (existem exceções). É o agora e para fora. Não existe acolhimento e sim espaço aparecer e talvez por isso seja uma cidade tão barulhenta, agitada, piscante e com tanta informação. Se tirar isso o que sobra? Paris tem construções antigas, tradição, tem uma história que está o tempo todo presente e não tem como tirar isso de lá. Faz parte desde sempre e assim sempre será. Ultimamente tenho lido algumas coisas de um psicanalista francês, Fedida, que é tão profundo em suas metáforas e compreensões do humano. Usa linguagem e imagens arcaicas, falam tão fundo que tenho sentido ímpeto de ler a obra dele no original. Conheço uma psicanista que compartilhou certa situação muito interessante em relação à obra desse autor. Contou que ao fazer seu mestrado havia uma obra desse pensador que não foi traduzida. Não lia francês e para superar esse obstáculo contratou uma professora de francês para ler e ela foi acompanhando no livro. Diz que aos poucos o texto começou a fazer tanto sentido que naturalmente estava conseguindo ler trechos em francês. Além disso a riqueza de sentido da obra era tamanha que a professora sentiu-se tocada e aos poucos foi verbalizando "coisas" próprias por sentir-se mobilizada pela leitura. E é assim quando leio o que ele escreve. Sinto vontade de ler o original porque é tão mobilizadora sua escrita, a maneira como escreve, seus pensamentos, suas imagens do humano que tenho sentido vontade de aprender francês. Quando algo "fala" e nosso eu se agita, é porque houve um sentido além da compreensão cognitiva. E a França fez e faz isso,  mobiliza coletivamente o eu de muita gente. Inclusive na psicanálise diz-se que o sujeito só passou a ser sujeito desejante (antes não havia sujeito desejante pois seu desejo já era pré-determinado por nascimento) quando houve a Revolução Francesa. O pai caiu e consequentemente a determinação do que pode ser desejado ou não. O sujeito pôde passar a ser desejante desde então e foi lá, na França. Não quero em nenhum momento afirmar que só na França nascem os que criam, os que falam ao coletivo interno de cada um, longe disso, Freud era Vienense, Darwin Inglês, mas não se pode negar que vários que nasceram em outros lugares foram para a França porque sentiam que lá havia eco, havia espaço para a expansão de seu eu. Tenho valorizado muito mais os filmes europeus por sua ausência de falas e por encenarem o que é mais próprio e humano. Dúvidas, conflitos, indecisões, loucura . . . . a vida como ela é, com todos os seus sentidos e seus não sentidos.

quarta-feira, 7 de setembro de 2011

A morte

Quando fazia a graduação, na cadeira de filosofia, a professora pediu para que lêssemos "O que é a morte" da coleção primeiros passos. Faz tempo, mas certo conteúdo me marcou. Fez-me lembrar um filme do qual gostei muito - Fanny e Alexander do diretor sueco Ingmar Bergman, cenas intensas, conflitos velados e a morte como determinante, como presença e experiência. Nesse "livrinho" o filósofo conta que houve períodos na história que a morte era integrada nos rituais de vida. Quando alguém da família ficava gravemente doente, quando se percebia que a morte logo chegaria, ou mesmo se repentina, havia um ritual. Os familiares próximos, principalmente as mulheres, cuidavam dos doentes e as crianças não eram afastadas do convívio. Após a morte o corpo era velado por dias na casa em que morava e as crianças continuavam fazendo parte do ritual. Não lhes era tirada essa experiência em nome de certa saúde emocional. Então, desde a mais tenra idade a morte era parte da vida . . . .  uma morte anunciada não era um trauma, algo marcante, era algo triste que seria vivido por todos. Lógico que se essa morte, para a criança, fosse de seu pai ou mãe haveria muito sofrimento, a falta de um deles, certamente uma morte traumática em função daquela falta, mas não porque a criança presenciou o natural. Bem . . . . . em algum momento da história resolveu-se colocar a morte como algo secundário. Surgiram os hospitais e as pessoas passaram a não morrer mais em casa, junto aos familiares, uma morte com mais "conforto". As crianças passaram a não viver mais as angústias da morte, da enfermidade, lhes foi entregue com louvor o mito do felizes para sempre. E elas, crianças, com muita pulsão de vida e sendo conduzidas por adultos apropriaram-se desse mito. E os adultos não querendo mais lidar mais com suas angústias expulsaram a morte do cotidiano. Ela é tão assustadora que deu-se um jeito. Muitos humanistas e filósofos falam sobre a morte, sobre essa angústia de aniquilação que o ser humano combate diariamente, desde que nascemos temos instintivamente medo da morte, e até por isso nos temos nos mantido vivos por tanto tempo. Simplificando, reduzindo: a morte também produz vida. É um constante não querer encontrar-se com ela, não querer findar-se e . . . . . multiplicar.  Ter filhos  é também necessidade de sobrevivência, de minha genética espalhar-se, não findar-me através dessa herança em meus filhos. A morte tem significados muito importantes em nossa vida em nossa constituição com ser, e por que será que tem sido tratada com tão pouca significância pela sociedade atual? Percebo crescer certa falta de respeito em relação a morte como se fôssemos potentes o suficiente para enganá-la. Não somos, mas nos vemos potentes. Há também outro tipo de morte, a "morte d'almas". Quando a vejo sinto-me sufocada e totalmente impotente. Quando há a morte do corpo existe certa conformidade que aquela vida se foi e nunca mais estará entre nós, mas quando há só "morte d'alma", vemos aquela pessoa na nossa frente, um corpo que se move, um corpo que fala, um corpo que se alimenta e nada mais. É um corpo que vaga com olhar e apetite vazios. Tudo transpassa aquele corpo, nada fica e nada emite. A imagem de um zumbi. Ouço todos os dias histórias de vida muito tristes, compadeço com o sofrimento alheio, mas quando percebo que lá naquele Ser pouco som é emitido, que já existe um findar de sua existência psíquica, entristeço. Hoje acredito que está tudo errado em relação à morte. Fingimos que ela não existe, achamos que quando temos um diagnóstico complicado a medicina sempre terá uma solução. Não falamos sobre isso com ninguém, tanto sobre nosso medo de morrer como também pelo medo que temos de nossos entes queridos morrerem. Tenho uma amiga com a qual vez por outra falamos sobre o medo da morte de nossos pais. São idosos, os quatro, e vira e mexe nos deparamos com situações em que a "dita", que tanto evitamos, mostra sua presença. No começo tocávamos no assunto um pouco constrangidas, mas hoje falamos abertamente . . . . . entre nós. Por que tem que ser um assunto tabu? Existe uma aura de superstição que, falando da morte estamos atraindo-a. Além disso há distorção cômoda na compreensão de discursos que envolvam o tema morte, um rótulo de pessimismo. Mas a morte existe, está aí, o que tem de pessimista em falar dela? Só falar dela é pessimismo, mas abordar o assunto quando pertinente . . . .  um tabu? Não dá para lidar com a vida sem lidar com a morte, em algum momento a vida vai exigir isso e aí, pegos de surpresa? Nossos filhos pegos de surpresa? Um dia li um artigo sobre resiliência e que o que mais aproveitei foi o seguinte: há uma tribo na África que, quando uma mãe com filhos pequenos / adolescentes morre ou entra em depressão, essa tribo elege alguma mulher da comunidade para assumir esse papel. Acreditam que a criança precisa dessa contenção e figura, desse acolhimento em ambos os casos. Simplesmente maravilhoso. Essa tribo fala da morte, e por falar em morte ela cuida daqueles que foram diretamente atingidos por essa morte, o sofrimento é amparado. A mãe em depressão é muito parecida com uma mãe que morre, o deprimido se retira da vida, não consegue mais habitar emocionalmente seu lugar. Fedida, psicanalista francês, coloca que não é porque a pessoa está deprimida que vai para o quarto, o deprimido primeiro se retira da vida e aí sim vai para o quarto. Outra magnífica colocação dele: "Se existe uma doença do vivente humano ela seria por definição a depressão". Doença do vivente humano. Essa tribo fala de morte, física e emocional e, por essas mortes terem lugar em sua cultura, em seu ritual, seu efeito não é tão devastador. A morte tem um lugar de respeito, de pertencimento nessa tribo, e esse lugar produz vida. Os "em sofrimento" tem lugar . . . . . um lugar de acolhimento.

domingo, 4 de setembro de 2011

Curtas: Nossa história nunca é só nossa história


Somos todos muito egocêntricos, acredito ser de nossa natureza. Para sobrevivermos quando muito pequeninos precisamos acreditar que só existimos nós para cuidarem. Sem os outros nossa sobrevivência é ameaçada e muito provavelmente sentimos o quão frágeis somos. E um dos sintomas de nosso egocentrismo é acreditar que nossa história, o jeito que somos, o que pensamos, são frutos só de nós e das experiências que vivemos. Ledo engano. Somos a mistura, a composição das histórias de nossas avós, bisavós, de nosso país e de nossa cultura. Nos desenvolvemos dentro dessa sopa de histórias e não dá para separar as partes, o que é única e exclusivamente meu e o que faz parte do outro. Tive uma paciente septuagenária, um encanto, com tanta vida que me espantei dela nessa idade fazer análise. Não me esqueço do dia em que me contou que sua bisavó tinha sido índia e foi pega a laço para satisfazer os desejos sexuais de seu senhor. Havia tanta indignação e sofrimento em seu comentário e para ela, seus sofrimentos, suas dificuldades não eram valorosos o suficiente em relação ao sofrimento que imaginava sua bisavó ter enfrentado. Foi uma violência e essa marca violenta está impressa nela até hoje, após 3 gerações. Uma marca de ruptura, do controle, do sequestro e da submissão. Tem um psicanalista francês - Fedida, que refletiu da seguinte forma: "É preciso toda uma vida para descobrir a análise desde que as vidas desta vida e seus mortos que não morrem sejam o material em movimento de uma tectônica da teoria." Os mortos que não morrem, muito real e muito vivo, nossa história é repleta de mortos que não morrem. Só que a tendência de hoje é não olharmos para essa nossa antiga história viva, só olharmos para frente, como se as respostas estivessem fora de nós, além de nós. As pessoas tornam-se tão vazias e seu egocentrismo fica cada vez mais exacerbado. Parece até um movimento de sobrevivência, já que não me sustento naquilo que me formou, minha herança histórica, ajo de maneira a acreditar que tudo tem que ser feito para mim. Volto a ser bebê, sem apreender quem sou, o que sou e só querendo que me preencham. Temos muito a aprender sobre nós com nossos mortos vivos, mas enquanto não os encararmos serão somente assombrações e não parte de nosso eu. Tentar construir-se, ter a equalização entre o que construímos como próprio e o que carregamos há gerações, além de não ser fácil, é uma ferida narcísica. Não sou puro, não sou único, já foram antes de mim e serão após, mas enquanto sou eu, como posso ser o que me impulsiono, ser com e através de toda a história que me constituiu. Nossa história nunca é só nossa e quando a renegarmos estamos colocando à  margem nossa essência.

sábado, 27 de agosto de 2011

O "óbvio" psicanalítico

Trabalho em uma instituição psiquiátrica e é próprio e característico que os pacientes internados, nesse momento específico  de suas vidas, nesse recorte de sua história, estarem em comprometimento psiquico que provoca sua retirada do convívio social. Esse comprometimento também o impede ou tira suas possibilidades do cuidar-se. Há casos também em que a família não dá mais conta de ajudá-lo e por isso recorre a um sistema de saúde mental (internação). Está precisando que outros cuidem de seu familiar como também precisam desse tempo para cuidarem-se. A internação também é um momento em os mecanismos de defesa do sujeito e a maneira que ele os desenvolveu para constituir-se como pessoa sofreram falência e ele está à deriva. Nessa instituição faço o atendimento psicológico desses pacientes psiquicamente frágeis e esgotados. Ao atendê-los busco junto a eles a ressignificação de alguma parte de sua história de vida que o ajude a olhar-se diferente e estruturar algo "velho" (na verdade é atemporal, pois está lá desde antes) para que seu psiquismo volte a ter certa cadência e ele possa voltar ao convívio social e consigo mesmo. Sempre nas 1ªs, 2ªs, 3ªs e outras tantas consultas que forem necessárias sinto a angústia da urgência de encontrar naquele indivíduo algo que faça sentido a ele mesmo para que ele possa sustentar-se psiquicamente e voltar ao convívio social. Falar da doença, dos sintomas, conscientizá-lo de sua morbidade de nada ressignificarão esse algo ou algos que provocaram sua falência. E para mim é claro, essa angústia é minha e essa semana eu percebi que essa angústia estava muito presente contibuindo para eu encobrisse o que acredito ser o mais importante: o "óbvio" psicanalítico, aquilo que mostra minimamente ao paciente e ao psicanalista os "lugares" possíveis de ressignificação. Por diversas vezes, essa semana, me deparei com a seguinte fala, minha: "seus mecanismos de viver, como você se constituiu como indivíduo entraram em falência e as coisas ficaram difíceis". Não fiz essas colocações sem contexto, objetivamente cabiam, mas só isso. Ao ouvir-me pela 3ª vez repetindo essas palavras, com pacientes diferentes senti que havia algo de "errado" comigo. Esse é o óbvio concreto, essa fala cabe, mas não traz nenhuma ressignificação já que é apenas uma constatação, tal qual uma pessoa quando sente sede sabe que isso acontece porque seu organismo está precisando de líquidos. Percebi isso quando um paciente, que eu tinha atendido uma 1ª vez, trazia muitos conteúdos, muita emoção para a sessão e todas as interpretações que tentei fazer eram óbvias no sentido do concreto. Eu não mostrava nada de novo, não mostrava ou não o fazia perceber que para saciar sua sede a água poderia servir. Logo depois de eu ter lançado mão da frase "papagaiante" (seus mecanismos. . . .  falência ) percebi que estava tudo errado, que o paciente estava procurando saber que líquido seria bom para ele. Ele não estava conseguindo saber. A ansiedade dele era transbordante, ele me mostrava isso claramente. Além de todos os fatos que ele me colocava sua subjetividade estava aflorada, seu psquismo em tempestade. Por diversas vezes ele repetia, estou cansado de sentir isso, estou cansado de viver aquilo, estou cansado de ter deixado isso acontecer comigo, estou cansado, estou cansado, estou cansado. . . .  no fim da sessão, após eu mesma achar que estava sendo uma  péssimas sessão, que eu não estava fazendo nada por ele, algo mudou. Eu disse para ele. . . . . "quando se está cansado o que deve-se fazer por si mesmo é descansar. . . . no momento é o que você está precisando. . . . . descansar". Seu semblante angustiado mudou e ele me disse: "puxa dra. eu não tinha pensado nisso, acho que é isso que eu estou precisando". Esse era o líquido que ele precisava para saciar sua sede. O mais simples de todos e o mais rico de todos, a água. Uma colocação óbvia, mas óbvia psiquicamente. Seu psiquismo estava muito tumultuado, precisava de um tempo para se organizar, precisava de descanso. O óbvio psicanalítico é isso, água, algo que hidrata, algo que traz alívio, pode ser momentâneo mas faz muito sentido.

domingo, 21 de agosto de 2011

Curtas: Água


Hoje, no carro, junto com Feliz e Estrela, conversávamos sobre costumes de outras épocas e suas vestimentas. Contei que há poucos anos atrás as mulheres não usavam calças, somente saias e não podiam sair às ruas sem chapéus. Perguntaram-me o sentido disso e disse que era o costume da época, pois essa maneira de se colocar era tida como bem educada. Ainda estavam um pouco confusas e resolvi usar o exemplo da época em que fomos "descobertos" (hoje sabemos que o Brasil já fora antes mapeado e não foi um acaso os portugueses atracarem em nossa costa, ao invés de chegarem às Índias). Perguntei a elas o que os índios vestiam quando os portugueses chegaram aqui. Responderam que quase nada e fiz a ponte com o conceito de costumes. O conceito ficou bem mais claro para elas. Estávamos na Av. Juscelino Kubitscheck quando Estrela me perguntou se nesse período (em que chegaram os portugueses), onde estávamos, era só mata. Coloquei que sim e ela me perguntou como o homem conseguiu destruir tantas matas e não tinha conseguido destruir as praias, o mar. Disse que nas florestas derrubam-se as árvores transformando ou destruindo o que tinha antes e construindo coisas em cima. Com o mar não dava para fazer isso. Como daria para tirar a água do mar e colocar em outro lugar? Ela tentou "inventar" um super recipiente, mas riu de si mesma percebendo o quão bizarro seria.  Então, minhas conexões se acenderam. Lembrei de vários significados sobre a água, inclusive que na mitologia grega seu significado é de vida. Não lembro que deusa cortou o saco escrotal de que deus que caíram na água do "mar", que borbulhou e a partir disso surgiu a vida. Segundo os cientistas a terra era só água, uma sopa de microorganismos que evoluíram. Nosso corpo tem em sua composição 70% de água. O ser humano sobrevive mais tempo sem comida do que sem água. A água parada traz sensação de morte, a corrente de renovação. A água tem também poder de destruição, devastação, os tsunamis. É um elemento que envolve a área mística também. No velho testamento Deus "purificou" a terra através do dilúvio. Em muitas religiões faz parte dos rituais de apresentação, cura e transformação. O que a água tem de tão especial e arquetípico que nos acompanha desde sempre? Tem tanta força e poder em nosso cotidiano e nos significados arquetípicos de nossa existência.  Será que a força desse elemento conseguirá manter-se, a vida ser preservada, ou será que a ação do homem irá acabar com ela também? Isso me preocupa.

sábado, 13 de agosto de 2011

Escrever sobre escrever: "metaescritura"?

Escrever me faz muito bem, me acalma, já que durante o tempo que elaboro, seja lá a ideia que for, estou muito voltada para algo muito meu, muito subjetivo. Mas, apesar desse bem estar ainda tenho uma certa sensação de falta. Por diversas vezes eu gostaria de expressar muitas das sensações que tenho ao ver uma cena na rua, em um episódio na televisão, ou ao ler um livro, um texto. É algo meio "extra mental" que, por vezes, me frustro ao escrever. Aquela imagem, sensação ou sentimento, o desencadeamento de ideias, nunca é uma só, muitas coisas que vem aparentemente (não acredito que só uma coisa desencadeie outras, são interligações que desencadeiam) estimuladas por algo naquela momento e não cabem em um único texto com logicidade. Ao  restringir esse campo, sinto perder qualidade, conteúdos, o texto não parece preenchido, tem certo vazio. Pelo menos para mim a escrita tem essa característica. Busco certa linearidade no encadeamento dos pensamentos, mas essa linearidade não abarca a real expressão do que provocou em mim. E é isso que estou questionando, será mesmo necessário ser tão burocrática? Como me comunicar, colocar minhas ideias, pensamentos e sensações, ser compreendida e não restringir a mim mesma? Será que sou capaz (não no sentido de qualificada, mas de ser desenvolvida o suficiente para encontrar a minha maneira de ser na escrita, e não a maneira como o entorno compreende o que deve ser uma escrita reflexiva)? Mas ao mesmo tempo eu me coloco na rede social e na internet, então busco certa compreensão do outro, busco eco no entorno. Como equalizar o meu ser escrita com o ser do leitor? A arte da pintura, escultura e talvez outras que eu não sei citar conseguem extrapolar, ou mesmo é próprio delas haver espaço para essa equalização. Tarsila do Amaral, não há proporcionalidade objetiva, mas muita beleza, encanto e sensibilidade. Transbordante. Pablo Picasso, Van Gogh, Salvador Dali, incontáveis pintores e escultores transmitem algo além do comunicável. E na escrita como comunicar esse algo além do comunicável? Como usar de um recurso de comunicação sem usar das regras de comunicação? Fazer um texto, uma escrita que pareça um delírio, algo fora realidade objetiva mas que faça sentido para o leitor? Como aproximar o leitor minimamente desse desencadeamento de sensações sem deixá-lo confuso ou entediado (no tédio há ausência de significado, é um nada)? Como não me frustrar já que descarto muita coisa para concentrar a logicidade em uma? Nessas horas penso muito em Saramago. Seus textos não seguem as regras do acordo de pontuação e suas ideias se abrem dento das próprias ideias. Por incontáveis vezes em seus livros ele abre parênteses de páginas e mais páginas, aparentemente fugindo daquela primeira ideia, mas tão dentro dela mesma que sua compreensão é imediata. Gosto bastante do realismo fantástico. Não há necessidade de logicidade, mas sim de sentidos, em todos os sentidos. Isso também me faz bem. Me acalma. Só que termino o texto com a sensação que tentei ir além da logicidade mas que não fui. Que meus questionamentos e minha angústia ficaram encobertos por outro algo que não está relacionado com sua origem ou mesmo com a trama desencadeante. Tudo é tão mais do que vemos, somos tão mais do que aparentamos, por que enconbrir e não expressar?

quinta-feira, 11 de agosto de 2011

Continuação de curtas: fila do supermercado e o amor está no ar


Sempre que realizo uma reflexão, dias depois sempre penso em algo que poderia ser acrescentado àquilo que foi escrito. É um movimento natural, aquilo de ontem, no hoje, estar modificado. Algumas coisas se transformam com mais intensidade, é mais visível essa mudança e outras nem tanto. Por esses dias eu estava naquele mesmo supermercado que já mencionei, a loja estava muito cheia e, portanto, os caixas também. Entrei em uma fila, nesse dia eu estava sozinha, e logo atrás de mim tinha uma mãe com uma filha de uns 2 anos de idade. Mais do que depressa os olhinhos da pequena viram aqueles brinquedinhos e ela logo foi pegá-los. A mãe, atenta, chamou a atenção da filha, que por sua vez não conseguia largar os brinquedinhos. Essa mãe, como forma de conter a menina, prometeu a ela um bombom caso ficasse quietinha. A menina sorriu, seus olhinhos brilharam e por alguns segundos conseguiu se conter, afinal o bombom era algo que também queria. Mas ela, só com seus 2 aninhos, não conseguiu, pegou o brinquedinhho de novo, convenhamos, a tentação é muita e ela se esforçou. A mãe fez seu papel. A repreendeu e disse que ela não iria ganhar o bombom já que não se comportou. Fiquei chateada, muito solidária tanto com uma quanto com a outra. O "monstro" do supermercado quer empurrar "coisas" e não respeita o  limite do outro e muito menos o território da mãe e da menina. É um "tremendo" de um invasor que faz sofrer. Por isso, depois de incotáveis vezes repreender minhas filhas por elas serem crianças (são atraídas pelas coisas) e minhas filhas sentirem o que a menina sentiu, resolvi dar "de ombros" ao supermercado. Ele é um monstro, mas eu não vou deixá-lo assustar as criancinhas e nem a mim. Pensei até em dizer isso a mãe, mas achei eu também poderia ficar na mesma posição do "monstro", ser invasiva. Já bastava o supermercado ter assumido esse papel. O máximo que fiz foi dizer para a menina que eu iria ser bem rápida, que logo chegaria a vez dela, o que de fato aconteceu. Até agora lembro daqueles olhinhos infantis, me olhando e dizendo: fui vista. Além dela tem outra menina me olhando com uma carinha de: cadê o amor que estava no ar? Feliz não está mais tão feliz. Seu namoro acabou. O corajoso rapaz que procurou demonstrar seu amor por Feliz fez o contrário. Logo que as aulas retornaram ele escreveu um bilhete: não te amo mais. Ela, de noite, já na cama, enroladinha no cobertor me contou sobre esse bilhete e relatou estar chateada porque acha que seu namoro não durou muito. Apesar daquela carinha meio desamparada, meio constrangida, eu sorri muito para ela e disse que para seus poucos 7 anos o namoro tinha até durado muito. Normalmente nessa fase os namoros duram dias e o dela durou pouco mais de mês. Ela sorriu, deu-se por satisfeita e dormiu. Sentiu-se bem, deve ter pensado: "ultrapassei uma etapa". Também fui dormir. Senti uma sensação muito gostosa de que a vida tem sido vivida como ela é. Também tenho ultrapassado as minhas etapas. Isso é muito bom.

domingo, 7 de agosto de 2011

A bolha da "normalidade"

Nas últimas semanas tenho entrado em contato com condições de vidas cujo psiquismo está no extremo de sua desorganização. O prejuízo é tanto que esses indivíduos precisam ficar em uma instituição para buscar certa estabilização emocional que os possibilite minimamente interagir consigo mesmo e com o outro. Por isso tenho ouvido diariamente histórias de família complexas, percebido muitos vazios e desorganizações, momentos significativos que são entendidos como banais e particularmente, muito sofrimento. Em outra ocasião de minha vida profissional também ouvia histórias no extremo do sofrimento, foi quando fazia um trabalho voluntário em uma favela de São Paulo. Esses  indivíduos com essa condição econômica não tinham oportunidade de mascarar sua história com muitos enfeites, por isso eles se apresentavam nus. Simplesmente se mostravam. Dava para ver as escaras a céu aberto, não tinha como não ver.  Era muito sofrimento, mas ao mesmo tempo podíamos juntos tentar fazer alguma coisa para cuidar do que fosse possível. Dava para ver. Tenho, então, na clínica psiquiátrica, revivido isso. O indivíduo está nu e a família tenta, com muito custo, organizar e colocar algum enfeite naquele realidade tão desorganizada. A família nada mais está fazendo do que o sempre fez. Esconder-se porque socialmente é algo difícil de se lidar e não é bem visto. Não é bem vista a desorganização de personalidade, as histórias de vida complexas e não lineares. A família tenta manter-se na bolha da "normalidade", a sociedade estabelece isso. Tem também o esconder para expiar a culpa que sentem por considerarem-se responsáveis pelo que está acontecendo. É muito sofrido atribuir responsabilidade a algo que fugiu do controle de todos, inclusive do próprio indivíduo. Outro dia em um texto coloquei o quanto achava que crianças tidas como marginais estavam mais para vítimas do que gostaríamos de pensar. Percebo que essas famílias também são vítimas de uma "norma de normalidade" ditada em algum momento de nossa história. O natural das relações humanas, essa desorganização com desequilíbrios momentâneos, rupturas com o curso anterior ficou rotulado com "anormal". Durante muito tempo pensei que como lido todos os dias com esse cenário de desorganização que eu vivenciava algo fora da norma, porém recentemente comecei a concluir que não. O que ouço e vivencio diariamente na clínica nada mais é do que a vida desnudada, exposta. Não conheço uma pessoa que não sofra, não conheço ninguém que não tenha histórias "estranhas" em sua família. Não conheço nenhum pai e nenhuma mãe (me incluo) que não tenha dúvidas do que esteja fazendo ou mesmo que perceba que sua maneira de ser não é das mais "equilibradas", mas é seu jeito, não sabe fazer diferente. Não conheço ninguém que não tenha vivido situações traumáticas em sua vida, que foram determinantes para mudar o curso de sua história. Não conheço ninguém que não seja "normal e anormal" ao mesmo tempo. A grande maioria das pessoas procura esconder esse mundo interno e familiar "alucinado" através de uma vestimenta de artificialidades e perfeição. Só que a vida o tempo todo nos está expondo e podem acontecer momentos que o escondido é visto. E . . . . .  a bolha arrebenta. Essa busca em manter-se escondido na bolha da "normalidade" de nada adianta. A bolha além de transparente é fácil de estourar. O natural, as histórias de vida confusas, as tristezas e loucuras deveriam ser parte do dia a dia e não algo fora do comum e que deve ser camuflado. A "normalidade" como está estabelecida hoje foge ao natural, ao comum. Não somos uma única coisa, somos o que vivemos, as situações que elaboramos, as que não, as histórias de nossos pais, avós, tios, primos, de nosso país, de nossa cidade. Somos um animal gregário e nossa história é também a história de nossa grei. O complexo É parte.

quarta-feira, 3 de agosto de 2011

Questionamentos de adolescentes

Quem nunca ouviu um adolescente perguntar porque a terra gira e não quica. E quando pergunta porque a vida é como é e não é de outro jeito. E então a clássica frase: "não pedi para nascer". Questionamentos, reflexões de adolescentes . . . . . qual a lógica? Exatamente essa, questionar o que aparentemente é inquestionável. Lembro de uma situação em que minha sobrinha adolescente, comentou que quando voltava de perua da escola tinha uma regra que não podia comer dentro da perua, mas que fazia isso escondido. Rapidamente saquei da cartola o discurso que se a regra colocada pelo perueiro era essa, deveria ser respeitada, afinal a perua não era dela e era um serviço contratado. Ela, mais do que rápido sacou da manga a arma do questionamento do inquestionável que paralisa o adulto. Ela me perguntou: "mas tia se inventarem uma regra que a regra é ter que se matar você iria se matar?" Diante do irrespondível . . . . . . me calei. São esses os questionamentos próprios dessa fase, é uma maneira de tentar formar alguma opinião própria sobre alguma coisa. Questionam porque querem pensar como também testar o outro. Como se não bastasse também sentem necessidade de pertencer a um grupo, que socialmente tenha projeção, e ao mesmo tempo não questionam as regras impostas por esse grupo. Contraditório? A base da adolescência é vivenciar conflitos. Por isso, por incontáveis vezes ele se afasta de sua família para, por outras ocasiões, buscar um abrigo já que tenta se projetar no mundo e muitas coisas acontecem. Nem de todas ele consegue dar conta. Esse vai e vem é parte, não dá para tirar isso da adolescência. À medida que o adolescente vai se tornando mais sabedor de si, tende a relacionar-se com a família em uma distância diferente. Se muito próximo perdem a visão do todo, e quando muito longe a imagem sofre distorção. Encontrar esse equilíbrio, essa conciliação é importante para tornar-se adulto. Por isso ele questiona tanto, quer saber onde está pisando.

domingo, 24 de julho de 2011

Curtas: A guarda real


O que será que pensam os guardas reais que ficam em frente aos palácios parados, em uma posição de estátua e que são vitrines para turistas? Quantas pessoas não ficam fazendo macaquices para ver se eles saem de seus "estatuísmos"? Antes de ontem eu fiquei na estrada por quase 3 horas para chegar ao meu destino. Durante essas horas, como eu havia acabado de sair da clínica e várias histórias de vida me foram contadas e  estava fazendo uma tarefa mecânica de dirigir, a todo o momento na minha cabeça vinham recortes daquelas histórias, imagens diversas e associações.  Fiquei por esse tempo "trabalhando" de maneira "desorganizada" tudo o que surgia, chegando muito cansada ao meu destino, com a mente exausta, porque muita coisa havia passado pela minha cabeça. Eu ficava com todos aqueles pensamentos em suspendo, não os expunha a ninguém, não concluía nada, era um turbilhão. Adorei quando cheguei e pude conversar assuntos diversos, trocar experiências, contar como foi a semana, discutir pontos de vista, rir, e aí sim, relaxei. Aquele turbilhão de alguma forma se organizou, se acomodou em algum lugar da minha mente e eu pude acalmar meu pensamentos.
Quando não há rota de saída, não há canalização e unificação dos pensamentos através, da interação com o outro, normalmente nossos pensamentos vão tomando vias caóticas e o indivíduo fica esgotado. No dia seguinte, com minhas filhas, vendo um desenho, apareceu um personagem tirando uma foto de um guarda inglês que fica tomando conta do palácio. O guarda manteve-se firme, congelado, enquanto seu amigo tirava uma foto sua, e somente um leve piscar de olho mostrou que eram amigos, um discreto gesto afetivo. Na hora eu comecei a pensar. O que será que acontecia com esses guardas reais na realidade de seus pensamentos. Lembrei-me de minha experiência do dia anterior, em que  eu estava em uma situação de rotina mecânica, dirigindo em uma estrada, e meus pensamentos tiveram liberdade de expandir e irem nas rotas que queriam, e eu pouco podia fazer para mudá-los de rumo porque não havia um outro com o qual eu pudesse interagir. Não necessariamente falar sobre esses pensamentos, mas manter um diálogo com o outra de forma que é necessário haver uma organização dos pensamentos. Lembrei que eu já tinha me manifestado sobre o dia a dia dos trabalhadores do Poupa Tempo, o quando era tedioso todos os dias fazer a mesma coisa, e vendo esse desenho, esse personagem que era um guarda real no Castelo de Bankigham, pensei: "o que será que acontece com os pensamentos deles"? Será que com algum tipo de treinamento eles têm como  ignorar o que lhes vem a cabeça? Não podem responder perguntas de turistas perdidos, ou qualquer outra coisa a não ser ficar em posição congelada e só fazer o movimento cadenciado quando pertinente. É um "boneco"? Mas ao mesmo tempo que é assim, existe todo um sentido muito antigo para ele ser assim. Será que esse sentido preenche o dia a dia dele como um ser social e coletivo. À noite conversei com meu pai sobre essas minhas reflexões e ele disse que provavelmente o que eles pensam é: "que horas são? "quanto falta"? "estou com vontade de ir ao banheiro"? Meu pai encenou coisas tão banais, mas pareciam muito pertinentes. Como será que um guarda real desses consegue ficar em sua posição congelada se no dia anterior passou por alguma situação extrema, do tipo, a mulher pediu divórcio, um filho contou que a namorada estava grávida, descobriu que a mulher tem um amante, descobriu que sua filha de 14 anos não é mais virgem, será que ele de alguma forma consegue cortar o fio de seus pensamentos e ficar lá, congelado, como se não sentisse nada. Ou será que seus pensamentos tomam proporção inimagináveis e o que vemos é alguém simplesmente impecável que está fazendo um esforço descomunal para manter-se neutro. Fiquei muito curiosa para conhecer mais sobre o que sentem essas pessoas, guardas reais, impecáveis e aparentemente inatingíveis.

sábado, 23 de julho de 2011

A infantilização da sociedade atual


Recentemente um amigo que trabalha em uma clínica que cuida de dependentes químicos disse estar impressionado com pobreza da vida emocional de tudo que tem cercando a vida dessas pessoas que estão em recuperação. Grande parte dessa população é jovem, em uma faixa de 18 a 35 anos. Esse meu amigo disse que em sua época de juventude ele e seus amigos fizeram muita "farra". Mas colocou que ele e os amigos debatiam, iam para a praia para curtir, viviam algo. O que tinham em comum era que conversavam, se divertiam, iam a shows, realizavam debates, expandiam suas mentes para algo além do prazer instantâneo, do prazer só consigo mesmo. Tinham também prazer na companhia do outro. E é ver o outro, perceber o outro, interagir com o outro, que é incomum nos dias de hoje. Atualmente viver em coletividade é coisa do passado. O moderno é não ver o outro só a si mesmo. Só se interessar pela satisfação dos próprios prazeres. Recentemente li uma crônica do Arnaldo Jabor que refletia sobre sobre a busca por felicidade no  homem moderno, em como é a busca por esse ideal. Ele colocou que em sua época de juventude o ideal de homem era ser como o James Bond que pegava todas as mulheres, lindas, espiãs, um homem charmoso, com um tremendo poder de sedução, mas que tinha um trabalho. Arnaldo Jabor frisa que hoje o homem moderno busca constante a satisfação imediata de seu prazer pessoal e que seu trabalho se resume a isso. Satisfazer-se e que não tem nenhum compromisso com o futuro ou com alguém. A sociedade de hoje tem caminhado cada vez mais por essa rota. Hoje os jovens desde muito cedo "aprendem" que devem ir para as baladas e beijar a maior quantidade de homens ou mulheres pois é a imagem de um ser (tanto o verbo como o sustantivos) interessante. Ser beijador é ter poder e status. Qual o sentido emocional de si com o outro em beijar na mesma noite três pessoas diferentes. Busca-se só o beijar pelo beijar e não que o beijar antecede o possível início de uma relação, seja ela qual for. O importante é beijar e dizer que beijou e não que encontrou alguém interessante com a qual sentiu certa afinidade. O outro inexiste nesse movimento do beijar pelo beijar. Então o encontro com o outro não é também para saber o que ele pensa, se tem haver com o que você pensa, se ele tem algo para te oferecer ou mesmo você a ele. Esse "encontro" com o outro nada tem haver com o outro só consigo mesmo. É para satisfazer o prazer sexual do beijar e o prazer do status em dizer que beijou. A criança por volta dos dois a três anos que é assim. Está começando a ter autonomia em relação a si mesma, já anda, fala e tem o controle dos esfincters e por isso acredita que já tem certa potência para alcançar o que deseja. Inclusive é por volta dessa idade que ela começa a se diferenciar dos outros, quando começa a perceber que tem uma identidade separada dos outros que estão a sua volta. E para acontecer amadurecimento afetivo a criança precisa experenciar a satisfação precisa quando dá e não exatamente no minuto seguinte ao desejo. A frustração, a não satisfação das necessidades imediatamente,  sua preparação como um ser coletivo, com papéis naquele seu bando, naquela sua coletividade são importantes de serem vivenciados. É assim que vamos nos tornando adultos amadurecidos, assumindo responsabilidades, cuidando de nós e do outro. Quando não amadurecemos, não aprendemos a esperar, projetar futuro, traçar objetivos de longo prazo, nos mantemos aprisionados em uma fase infantil. Satisfação imediata dos prazeres. Isso deveria ser consequência do amadurecimento e não objetivo de vida. Usei como exemplo a área sexual, mas as outras áreas do indivíduo também têm sido regidas pelo princípio do prazer imediato. Profissionalmente, precisa-se rapidamente alcançar altos cargos e elevados salários, só assim sente-se prazer no sucesso profissional. Na área familiar há uma intensificação dos discursos de liberdade de pensamentos, mas essa liberdade é cercada só pelo eu, e não também pela liberdade do outro.  E assim sucessivamente em todas as relações.  Não dá para dizer se é por causa da tecnologia, se é em função da revolução industrial ou se esse movimento se iniciou no mito da caverna de Platão. O que dá para afirmar é:  estamos na ERA do EU. . . . . . . infantil.

domingo, 17 de julho de 2011

Medicina hiper diagnóstica laboratorial

A medicina de hoje está muito avançada para diagnosticar e o conhecimento da existência de uma série de doenças, raras ou não, está cada vez mais presentes. E esse conhecimento, essa descoberta dessas doenças desencadeia o desenvolvimento de testes laboratorias específicos para confirmar as suspeitas. Afinal, o médico cria hipóteses de possibilidades ao examinar clinicamente um paciente, ao ouvir seu histórico e a descrição e seus sintomas e existem determinados casos que é necessário um exame laboratorial para confirmar ou descartar hipóteses levantadas. Mas também há casos que só o histórico clínico já indica a doença.  Mas uma coisa é sempre igual, o exame clínico realizado pelo médico é imprescindível para gerar hipóteses e os laboratorias para confirmá-las ou não. Hoje, esse panorama que eu apresentei . . . .  só no mundo da imaginação. Vou ilustrar minha reflexão com um caso específico em que a intensificação do diagnóstico laboratorial pode trazer muito prejuízo na vida das pessoas. Há pouco mais de um mês nasceu uma sobrinha minha, filha da irmã de meu marido e uma alegria na família, uma vivência única e agradável que sempre acontece quando há um bebezinho. E nesse caso específico foi o primeiro filho de um casal que teve muita dificuldade para a concepção. Tudo estava muito bem quando, após uns 20 dias do nascimento, o médico liga dizendo ser necessário fazer outro exame do pezinho porque deu alteração em uma proteína que pode indicar fibrose cística. É uma doença crônica e fatal, a expectativa de vida do indivíduo por maior que seja é de 30 anos. Foi um pânico, minha cunhada e meu cunhado foram do céu ao inferno em questão de segundos. Para resumir a segunda prova deu negativa, ela está ótima, mas depois eu soube detalhes sobre esse teste, o porque da investigação e fiquei indignada com a irresponsabilidade dos médicos em pedir tal teste aos recém nascidos. O bebezinho nasce com uma proteína sensível para essa doença e se essa proteína estiver em níveis elevados pode indicar probalidade da criança ter essa doença. E que com o passar dos dias, o nível dessa proteína vai baixando para aqueles que não têm a doença, portanto é muito comum bebês recém nascidos saudáveis terem em seus primeiros dias de vida essa proteína aumentada. Além disso existem sintomas clínicos claros desde os primeiros dias do bebê que podem indicar a existência dessa doença: o mecônio demora para descer, não pega peso, não evacua normalmente, essa proteína interfere na digestão e na absorção dos nutrientes. É um caso muito diferente de outra patologia que é detectada pelo teste do pezinho, o hipotireodismo congênito que se detectado cedo as intervenções podem impedir que haja comprometimento no desenvolvimento neurológico da criança. No caso da fibrose cística muito pouco pode ser feito logo que o bebê nasce para impedir prejuízos maiores. Minha cunhada também contou outro caso de uma vizinha dela, também com um bebê recém-nascido cuja primeira e segunda prova do teste do pezinho deram positivo para a doença e que o próximo passo era fazer o teste do suor no H.C. Essa mãe contou para minha cunhada que quando chegou no H.C. existiam muitas mães na mesma situação que ela. No caso deles o sofrimento foi de quase dois meses, pois além da segunda prova o teste do suor demora 45 dias para ficar pronto e deu negativo. Qual será que foi o dano psicológico e emocional para esses pais e esse bebezinho, e para os outros milhares que sofreram na mesma situação até descobrir que seu bebezinho goza de ótima saúde? Tem algum teste laboratorial para comprovar? Qual o custo benefício de se fazer o teste nos recém nascidos se essa proteína é tão sensível de ser detectada? É como no hipotireodismo congênito que internvenções emergentes podem fazer toda a diferença? Será que a medicina laboratorial  acredita que há sofrimento para os pais, que a produção do leite materno pode ser afetado, que a ansiedade de saber se seu filho tem ou não uma sentença de morte pode afetar periodicamente o desenvolvimento da criança e a relação deles. Onde está a medicina clínica? Será que ao invés de desenvolver o teste laboratorial para fibrose císitca e torná-lo rotina os médicos pediatras não deveriam ser treinados a conhecer mais sobre a doença e seus sintomas para que, se perceberem tais sintomas na criança, aí sim pedir exames para confirmar ou descartar o diagnóstico. Nesse caso específico da fibrose cística (caso que conheci recentemente) a medicina do diagnóstico laboratorial tem condenado pais e bebezinhos ao inferno, por muitos dias, sem serem "pecadores". Um crime. Acho que a medicina avançou muito em tecnologia,  mas a formação clínica dos médicos está cada vez mais pobre. Eles têm dificuldade em acreditar nos sinais clínicos que enxergaram, precisam das provas laboratoriais. Os médicos estão tornando-se "covardes", estão perdendo a capacidade de acreditarem em si mesmos, pois a medicina do diagnóstico laboratorial está encapsulando a clínica. Tem também uma parcela de médicos que acha mais fácil ser um leitor de resultados de exames porque não precisa se responsabilizar por ter investigado mal, por não ter dado atenção a determinados sintomas. São os do tipo "corpo fora". Tenho também um exemplo ótimo para os do tipo do "corpo fora". Uma vez meu marido ficou com uma febre de uns 38 graus, que pouco abaixava e uma dor de cabeça fortíssima. No terceiro dia surgiram umas manchas vermelhas no seu braço. Fomos ao médico do P.S que mal o examinou e pediu um exame de licor para descartar meningite, além do hemograma. Questionamos se não poderiam ser antes descartadas outras coisas e o médico disse: "vou então pedir a opinião de um colega." A porta estava aberta e um outro médico passou e ele chamou. O outro médico ficou na porta mesmo e o que nos atendia disse: "dor de cabeça, febre, manchas no corpo, peço licor (sic)", e outro disse: "Oh". Foram as três horas mais longas, tínhamos filhas pequenas, a irmã dele com um problema de saúde, etc..... ficamos no isolamento. O enfermeiro que foi nos atender quando soube do possível diagnóstico saiu fora na hora para verificar uma "coisa". Meu marido fez o exame, bem invasivo, depois de feito a pessoa precisa ficar 24 deitada e só levantar para o essencial. O plantão trocou e o médico que veio nos dar a boa notícia, questionou de maneira sutil porque foi feito o licor e disse que o hemograma estava típico de uma virose. Dissemos que as manchas vermelhas no corpo era o que havia de estranho. Esse outro médico apertou uma delas, que ficou amarela. Ele disse: "são manchas alérgicas, manchas de meningite se apertadas continuam vermelhas, pois são pequenos derrames de sangue". Lógico que fiz uma e-mail enorme para o hospital que dias depois me ligou dizendo que em função da minha reclamação alguns procedimentos no hospital foram alterados. O atendente do hospital, que me ligou, se esquivava de toda e qualquer pergunta que eu fazia para me aprofundar no caso. Ficou claro para mim que se o hospital assumisse que o médico realmente errou feio ao pedir o exame poderíamos entrar com um processo. Além do nervoso, do procedimento invasivo, temos que pagar mais pelos nossos convênios médicos, pois quanto mais os procedimentos são feitos mais os convênios aumentam suas mensalidades. Além de tudo somos invadidos em nosso bolso pelos médicos do "corpo fora". Depois de tudo isso eu pergunto: onde estão os médicos clínicos, para mim uma raça em extinção. Tem um livro ótimo chamado "A cidadela"de A. J. Cronin, que mostra o trabalho de um médico em uma mina de mineração e várias conclusões sobre alguns dos males provocados por esse trabalho. As conclusões a que ele chegou foram através de sua observação do dia a dia do trabalho e dos sintomas que os trabalhadores apresentavam. Tem também uma história de romance e algumas crises existenciais, mas mostra também o trabalho de um médico clínico.

terça-feira, 12 de julho de 2011

Marginalidade

Sempre ouço rádio de notícias no caminho ao trabalho. Hoje não foi diferente. Teve o relato de um ouvinte que chamou minha atenção. Não só pelo fato em si, mas também pelo que comecei a pensar. O ouvinte, em seu relato, disse ter sido assaltado por três adolescentes em um farol que portavam revólveres. Após o assalto foi à delegacia fazer um boletim de ocorrência e o delegado disse saber quem eram. Pegou uma foto que foi tirada por câmeras de trânsito e, para espanto do assaltado, reconheceu os três no momento em que viu a foto. O delegado mencionou conhecê-los há muito tempo, tinham em torno de 12 e 13 anos e  por serem menores não havia o que ser feito. O assaltado também relatou que nas duas horas em que ficou na delegacia chegaram mais pessoas que vitimas de assalto, na mesma condição que ele e pelos mesmos infratores.
Fiquei muito triste ao ouvir esse relato. Não só pelo medo da violência. Imaginei como esses meninos viverão muito pouco, se é que já não estão mortos. Em breve vão perder suas vidas e provavelmente também tirar a vida de outras pessoas, se é que já não tiraram. Esses meninos, como outros em condições similares, são negligenciados (não só por familiares, mas pela sociedade em geral). Não demonstram sentir medo. Não mostram possuir qualquer freio social. A lei moral para eles nada representa.
Essas leis não se constituíram, não se estabeleceram só para repreender, para tornar as pessoas engessadas ou submissas. Elas existem também para as bases de sustentação de qualquer ordem social e do constructo do indivíduo.
Não é só a espécie humana que têm essa organização. Os chimpanzés possuem normas de conduta, estrutura hierárquica social, assim como outros primatas superiores. Existe um sentido muito vivo nessa ordem.
Uma dessas leis que rege nossa sociedade é a preservação da vida, tanto a sua como a do outro. Se a maneira de reprimir a vontade de matar outro ser humano é através de religião, leis jurídicas, mandingas, ardência no fogo do inferno, pouco importa. O principal é uma existir uma "barreira", uma norma e uma conduta naquela sociedade. Se não for seguida a consequência acontecerá, seja ela qual for.
Além de manter a ordem essa norma contribui para o desenvolvimento psicossocial do indivíduo. Para segui-la a pessoa precisa desenvolver mecanismos internos para conter uma ação decorrente de uma emoção instantânea. Por exemplo: uma criança pequena, uns 7 ou 8 anos, reclama que não quer ir à escola, que aprender é chato, e os pais resolvem "respeitar" o desejo de seu filho e o liberaram de ir à escola.  Nessa idade a criança não tem condições de fazer escolhas dessa natureza, que envolvem sua pertinência social e seu desenvolvimento individual. Essa criança não sabe projetar futuro, não tem vivência e nem maturidade emocional para fazer uma escolha que está diretamente ligada a sua sobrevivência física e emocional.
Toda pessoa, ao longo de seu desenvolvimento infantil, precisa de uma contenção externa, precisa de um condutor. Não conseguimos desenvolver contenção interna se no externo não tiver nada que me dê base.
Então, esses meninos, simplesmente não tiveram ninguém que fizesse esse papel de contenção externa, conheceram a marginalidade muito cedo e nela ficaram. Sentem-se potentes portando armas, e são mesmo, podem matar alguém. Mas, e se tirarmos isso deles, o que será que sobra? Essas crianças não desenvolveram mecanismos de defesa e pertencimento mais elaborados. Se desenvolveram de uma única maneira. Atacam para obter o que querem no momento em que querem. Não existe o outro, talvez até por eles não existirem para ninguém. Não precisam, elas têm armas e muito cedo se envolvem em situações de risco tanto para si como para o outro. Isso é muito triste. Nesses casos a gente nunca sabe onde começa uma coisa e termina outra. O quanto tem do social, do familiar. Senti certa tristeza por esses meninos, e pelas vidas que tiraram ou tirarão. Só mortes, eles mortos como pessoas, e em breve seus corpos também.
Já fui assaltada a mão armada em outra ocasião, foi assustador. Não quero passar por isso de novo. Mesmo assim, eu continuo me perguntando: será que esses meninos tiveram alguma chance de ser diferentes ou será que já nasceram pré-destinados pela combinação de fatores sócio, econômicos e familiares?

domingo, 10 de julho de 2011

Mãe continente


Quando estava na faculdade tive aulas sobre a psicologia da gestação. Estava no primeiro ano, logo no começo do semestre, muita coisa era nova para mim, então eu mais absorvia do que refletia. Lembro-me bem de algo que me chamou muito a atenção, mais pela palavra em si e pelos significados que poderiam existir do que pelo fato em si. O conhecimento que me foi transmitido é que via de regra a mulher que engravida sabe disso inconscientemente e é comum sonhar com objetos continentes, bolsas, casas, caixas, etc.... Não vou afirmar ou contradizer, não é esse o meu objetivo. O que quero é chamar a atenção para a palavra: continente. Essa palavra, o que ela poderia significar ficou anos ecoando no meu universo reflexivo e só há pouco tempo pude compreender o que para mim tanto chamou a atenção. Lembro que eu ficava repetindo: "objetos continentes, que contém, a gestante tem dentro de si um ser em desenvolvimento e ela simboliza isso através de objetos continentes". . . . só que sempre parecia que faltava algo. Sempre me perguntava: "esses objetos podem conter coisas, mas quais são essas coisas que eles podem conter? Se formos pensar em uma bolsa de mulher, muita coisa dá para caber, dependendo do tamanho e da vida que esta mulher leva. Lembro-me que quando engravidei prestei atenção a meus sonhos, e não foram com objetos continentes e sim com muita água. Sonhei com abundância de água. E lógico, fiquei com mais pontos de interrogação. E além de ficar sempre pensando o que poderia conter nesses objetos também lembrava dos continentes que aprendi em geografia. Uma porção muito grande de terra cercada de água por seus lados. Abre parênteses: Até hoje não vejo onde Europa e Ásia são separados, mas isso é outra história - fecha parênteses. Minhas filhas nasceram, tão diferentes, duas, eu não sabia se conseguiria ser uma mãe suficientemente boa. Lembro bem da amamentação. Gostava de amamentar cada uma de uma vez. Era mais trabalhoso, demandava mais tempo, eu descansava menos, mas me sentia melhor. Gostava de ficar olhando. Lembro-me de muitas coisas, mas particularmente de Estrela, que sempre foi muito voraz e via o movimento na garganta, eu achava tão interessante. Sentia-me bem em observar. Só que tal momento costumava ser interrompido porque a irmã da que estava no peito tinha acordado e reclamava também sua porção de leite. E eu, ficava angustiada. Torcia para que, quem estivesse no peito logo se saciasse, para que eu pudesse atender as necessidades da outra. Dar os peitos simultaneamente seria um solução para a angústia, mas mesmo sabendo disso eu mantinha a rotina de uma por vez. Tentava administrar. Só, em raras ocasiões, dei os peitos simultâneamente, não gostava. Eu vaca leiteira, elas bezerrinhas. Se alguma perdesse o bico eu tinha que chamar alguém para ajudá-la. "Ei, fulano, ajuda aqui, fulana perdeu o bico. . . isso .  . . ajeitou . . . obrigada". "Ei fulano, ajuda aqui, fulana já acabou, pega e faz arrotar enquanto termino aqui." Linha de produção era a sensação que eu tinha, definitivamente não gostava. Eu não conseguia explicar ou mesmo entender os motivos de tanta resistência. Hoje, depois de muitos anos, de muitas coisas, compreendi. O bebezinho veio ao mundo, saiu de um lugar que parecia só dele, quase sempre com a mesma temperatura, com os mesmos barulhos, com sua comida disponível no horário que quisesse, para um lugar diferente. O bebezinho, logo que nasce, precisa sentir segurança, conforto, calor. Precisa ficar em uma relação parcialmente simbiótica, com momentos simbióticos, cujo sentido só é compreendido pelo bebezinho e sua mãe ou cuidador. Então o dar de mamar ou mesmo a mamadeira, o cuidar do bebê, trocar sua fralda, dar um banho é uma experiência única que acontece entre o bebezinho e seu cuidador.  É como se naquele momento nada mais houvesse e o continente é formado apenas pelo cuidador e o bebê. Ser continente é aquele que separou dentro de si um espaço de bom tamanho para caber aquele outro (podemos estender para nossas relações com marido, irmãos e amigos). É abrir espaço, um lugar para o outro dentro do espaço que já construímos para nós mesmos. Por isso que, por vezes, mesmo angustiada que minha outra filha poderia acordar com fome e eu não a atenderia prontamente, eu me sentia bem, estava sendo continente com uma e depois seria com a outra. Cada uma tinha o seu espaço nessa relação.